A síndrome de Saturno ou a Lei do Pai: máquinas canibais da modernidade

 



Refeição totêmica

Que o rito da Eucaristia seja uma versão civilizada da refeição totêmica não é invenção do pensamento freudiano. A hipótese pode ser encontrada na obra de Frazer, a quem de bom grado Freud presta homenagem5. E aí é fácil ver os interesses estratégicos. É que tal hipótese sustenta com vigor a tese mais contestada de sua antropologia: a universalidade de Édipo6. Ao sugerir que Cristo tenha sido crucificado apenas para tornar-se Deus (a expiação transforma-se em usurpação), Freud reinterpreta a seu favor a argumentação cristã sobre o modo retórico de um paradoxo calculista. Pois esse exercício dialético retoma uma velha história na qual, para possuir a mãe, o filho tem de matar o pai: conhecemos a ladainha. A saga religiosa se inscreve obrigatoriamente na estrutura simbólica da economia libidinal. Mas é preciso confessar que essa anexação fagocitária é, por sua vez, um processo. . . canibal. Para impor a fábula edipiana, Freud toma liberdades duvidosas em relação à fábula eucarística. Não há texto que sustente a hipótese fundadora de um parricídio original. Na verdade, trata-se do inverso: é bem outra a lenda que nos conta o Gênesis. Há mais. Na doxa cristã (mais tarde católica, depois da Reforma), a eucaristia não é simples metáfora, um fragmento circular de pão ázimo. O que o comungante come·e é nisso que ele acredita, pelo menos·é o próprio corpo de Cristo. A transubstanciação torna a hóstia um pouco mais do que um vestígio ou um emblema: o princípio efetivo de uma presença real. Ninguém é obrigado a concordar com essa alquimia artificiosa. Trata-se apenas de um dogma. Mas ela não deixa de ter conseqüência direta sobre o jogo de papéis, que distribui o poder na mitologia cristã, a qual toma o cuidado de distinguir o filho do pai, acrescentado-lhes, para dar boa medida, uma entidade estritamente conceitual, em que se resolve a ousada equação·a soma algébrica·dos dois termos precedentes: o Espírito (santo). Esse vetor escolástico de todos os idealismos, que cristaliza os atributos maiores da divindade, transforma o duo filial em trio doutrinal. Ora, a Trindade cristã, produto polêmico (desnecessário explicar) de séculos de heresia, não é de ordem racional. Mas de ordem fálica. Suas hipóstases masculinas têm um único objetivo: impor a lei do pai. E esta passa necessariamente pelo sacrifício ritual do filho. O Verbo (Logos) se faz carne (Phallus) sem maiores aflições. Assim o exige a metafísica ocidental do patriarcado.

 






5. J.G.Frazer, "Taboo and the perils of the soul", The golden bough, II, 1911 (cf. S. Freud, op.cit., p.231, n. 1, etc.).


6. De Malinowski a Deleuze. . .