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(continuaçâo)

Ecce Homo

Na obra de Dante, ao último círculo do Inferno (o nono) é relegado o pior dos crimes·a traição. Mas de todos os traidores que assombram o final do poema, inclusive os célebres, só um ainda nos é familiar, senão popular: Ugolino7. Tirano de Pisa, cujo povo o destituíra, Ugolino foi murado numa torre com os filhos. Quando o desespero lhe inspira um gesto equívoco·morder as próprias mãos·, os filhos lhe oferecem a própria carne para mitigar sua fome. Ugolino recusa. Morrem os filhos. E o pai acaba por lhes comer os cadáveres antes de por sua vez perecer. Dante o condena a roer eternamente o crânio do rival, o arcebispo Ruggiero, que lhe causara a ruína. De Reynolds a Rodin, por via dos românticos, a figura de Ugolino fascina os inventores da modernidade8. Pois ela conjuga dois ingredientes primordiais de uma arte nova, a violência e o sentimento, a história e o drama, o político e o patético. Reynolds codificou a cena num quadro famoso, que pode ser visto como um manifesto do retorno a Michelangelo, do qual ele é o profeta9. O pintor escolheu o momento do poema em que os cativos percebem que estão sendo emparedados. E a imagem é regida por uma antítese incisiva, em que o aspecto hierático·petrificado·de Ugolino se opõe à aflição·convulsiva·de seus filhos. Essa duplicidade retórica é de intenção estóica. Exalta a grandeza do herói, sozinho contra todos, no desalento de um destino tão funesto. Reynolds moraliza ao se esquecer do resto. E os artistas que a ele se seguem fazem o mesmo. Füssli apresenta à Royal Academy um quadro de importância, hoje desaparecido, do qual se conhecem apenas gravuras10. Trata-se de insuflar na cena vigor épico (alguns diriam teatral), que Reynolds ignora. Mas a estrutura da imagem permanece idêntica: o mesmo episódio, a mesma antítese. O que muda é só o motivo do pai, que segura sobre os joelhos o corpo de um dos filhos. E esse abraço ostentatório, que sugere·discretamente·a antropofagia do epílogo, é o mesmo de um vampiro ou de um súcubo: não estamos longe do Cauchemar [Pesadelo] em que o artista convocava essas criaturas noturnas. Blake sempre se interessou pelo personagem de Ugolino, de quem fez nos anos da juventude (depois de 1780) um Jó leigo, até bem profano, em que Dante substituiria a Bíblia, e Deus, o arcebispo Ruggiero: uma figura do justo prostrado pela injustiça dos homens. Quarenta anos mais tarde, no fim da vida, o artista volta ao tema numa daquelas aquarelas sobrecarregadas de cor, em que floresce sua violência expressiva11. E a cena de desespero é uma cena de redenção. Dois anjos simétricos, de aparência primitiva, que se inclinam para Ugolino, parecem prometer melhor sorte aos cativos. A criatura de Dante é subtraída aos Infernos. Já suspeitávamos disso. Para Blake, Ugolino é mesmo um pai, mas um pai celestial, isto é, um deus. Delacroix, assombrado pelo assunto há muito tempo, se dermos crédito a seu Diário, perpetua essa conotação religiosa quando, no fim da vida, pinta sua versão do mito12: Ugolino, parado nos degraus ao pé de uma coluna, que evoca o cenário lúgubre de um Ecce Homo, e os filhos prostrados a seus pés numa reptação coletiva, senão trinitária, que faz lembrar os êxtase






7. Dante, Inferno (La divina comedia), Cantos XXXII, 124“139 e XXXIII, 1“90, trad. fr. (à vista do texto original) J. Risset, Paris, 1985, p.294“301.


8. Cf. F. A. Yates, "Transformations of DanteËs Ugolino", The journal of the Warburg and Courtauld Institutes, XIV, 1951, p.92“117.


9. Knole Park, Kent, 1773.


10. Moses Haughton, 1811 (Yates, loc. cit., p.111“113 e prancha 19/a).


11. Cf. Yates, loc. cit., p.112-113 e prancha 20.


12. Ordrupgaard, Copenhague, 1860 (Johnson, n.337, p.153“ 154, prancha 158). Desenho: acervo do Louvre, RF 9452.


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