Van Gogh em São Paulo


Apropriação

Identificamos a antropofagia na obra de Vincent ao constatar que freqüentemente ele usava como guia a composição da obra de outro artista, sem copiá-la às cegas. Millet, o "pintor de agricultores", foi indubitavelmente o artista que ele mais copiou, muito embora as pinceladas e o uso das cores sejam inequivocamente de van Gogh. "Percebendo o valor, a originalidade e a superioridade de Delacroix e de Millet, por exemplo, sinto que preciso desses artistas como base para extrair o melhor de minhas modestas capacidades."3 Por sua vez, muitos artistas são seus devedores: a obra e o curso dramático da vida de Vincent têm sido constante fonte de inspiração. Gauguin, os fauvistas, Mondrian, Sluijters e os expressionistas alemães, todos eles aprenderam com sua obra.

Sabe-se que ele vendeu muito poucos trabalhos durante sua vida. Mesmo assim, foi capaz de continuar produzindo arte, apesar da contínua ameaça de pobreza, em virtude da mesada que recebia do irmão, Theo. Suas cartas ao irmão são profusas em referências a dinheiro. A mesada lhe tirava um pouco a necessidade de vender as obras. Houve casos em que Vincent até se recusou a vender, porque preferia manter juntas determinadas obras. Surpreendentemente, Theo, ele próprio um marchand, parece ter feito pouquíssimo esforço para vender ou mesmo expor o trabalho de Vincent. Amor e ódio parecem ter marcado o relacionamento entre os dois irmãos, com o Vincent artista sendo canibalizado pelo irmão. Ao fornecer a Vincent quantias muito variáveis (provavelmente por causa dos próprios problemas financeiros), Theo o tornou completamente dependente de si. O artista logo reconheceu que todos os seus trabalhos pertenciam basicamente a Theo, que não parece ter tido muita dificuldade em aceitar tal submissão. Essa dependência de Vincent em relação a seu irmão era mais do que financeira: em suas cartas, tentou repetidas vezes explicar e justificar seu modo de vida. A única maneira pela qual exprimia críticas à excessiva dependência para com o irmão era pelas constantes observações quanto ao montante ou à falta dos pagamentos de Theo. Raramente Vincent insistiu com Theo para que fizesse mais a fim de difundir seu trabalho. Os dois irmãos permaneceram uma unidade autônoma, de um lado caracterizada pelo relacionamento artista·comprador/patrono e, de outro, pela dominação nociva que Theo exercia. De vez em quando, este parecia identificar-se com o Vincent artista e realizar, mediante o controle da vida e obra de Vincent, as aspirações artísticas que ele próprio tinha·reprimidas em virtude da necessidade econômica de trabalhar para um marchand. Como para confirmar essa idéia, Theo morreu seis meses após o suicídio do irmão.





3. Vincent van Gogh, carta 605, setembro, 1889.