Utopias regressivas? (radicalismo vanguardista em Siqueiros e Oswald)


As afinidades conceituais e ideológicas entre ambos os artistas advêm de dois espíritos paradoxais que ficaram sincronizados com a sua era sob o pressuposto de serem contra (ou não). Nestes termos, eles entenderam cedo o valor tanto da contradição quando da negação·o estímulo primal da vanguarda histórica européia·para o feitio de uma práxis cultural de cunho crítico. No ensejo de consolidar uma vanguarda na América Latina, a sua contribuição é importante justamente por terem procurado repetir aquele impulso negativo europeu no nosso submisso contexto. Isso se torna evidente nos seus primeiros manifestos. Os "Tres llamamientos de orientación actual a los pintores y escultores de la nueva generación americana" ["Três chamamentos de orientação atual para os pintores e escultores da nova geração continental"] de Siqueiros (Barcelona, 1921)5 e o "Manifesto pau-brasil" (São Paulo, 1924)6 condensam as preocupações tanto artísticas quanto ideológicas que os uniram e, concomitantemente, estabelecem bons antecedentes para as suas contraditórias considerações sobre uma vanguarda latino-americana7. Curiosamente, ambos os textos representam uma convocação aos artistas e escritores do México e do Brasil, para abandonarem o academicismo enferrujado do passado e, em seu lugar, "fazendo uso do raciocínio devemos acolher todas as inquietudes espirituais de renovação nascidas de Paul Cézanne até nossos dias".8 Portanto, eles estão no encalço de um duplo escopo que é ambíguo: por um lado, o de estimular o desenvolvimento de "novos meios" para a literatura e as artes visuais, com a incorporação dos princípios vanguardistas; pelo outro, a promoção daquela perspectiva verdadeiramente autônoma baseada na recuperação das tradições indígenas.

Tanto os "Tres llamamientos" quanto o "Manifesto pau-brasil" são de grande interesse para elucidar as fontes vanguardistas de que ambos os artistas partilharam. Além de Cézanne, cuja arte eles consideram como o fundamento da nova sensibilidade, torna-se evidente que Siqueiros e Oswald aderiram ao rappel-à-lËordre que escorava as tendências neo-clássicas daquela vanguarda, principalmente na França e na Itália (Cendrars, Léger, de Chirico, Carrà, etc.). E é aqui que subjaz, sem dúvida, o aspecto regressivo das suas utopias progressistas. Isto é particularmente surpreendente em Oswald, cuja obra-prima modernista, Memórias sentimentais de João Miramar (1917“1925) , tinha-se inspirado diretamente na montagem cubo-futurista. Em "pau-brasil", no entanto, o seu elã dadaísta cedeu lugar à exaltação, ora da síntese, ora do equilíbrio, numa posição que o coloca bem mais próximo do pólo neo-classicista de Siqueiros9. Segundo argumentei em outro ensaio10, a propensão do pintor mexicano para o classicismo não é senão um extremo da sua constante oscilação entre o dinamismo (um conceito originalmente cunhado pelo futurismo) e a racional volta-à-ordem. Essa ambivalência marcou toda a sua obra. Contudo, a metáfora do artista enquanto "engenheiro" ou "construtor" de uma nova era está presente nesses dois textos11. Desse modo, ali onde Siqueiros frisa "a preponderância do espírito construtivo sobre o espírito decorativo ou ainda analítico", a linguagem dos "cubos, cones, esferas, cilindros e pirâmides" como sendo "o esqueleto de toda arquitetura plástica", e propõe a realização da obra "dentro das leis invioláveis do equilíbrio estético", é ali mesmo que, dentre "as leis nascidas do próprio rotamento dinâmico", Oswald enumera "a síntese", "o equlíbrio", como sendo os elementos-chave no "espírito construtivo" dessa nova estética herdada da vanguarda12. Além do mais, eles intercedem a favor de uma nova perspectiva e de uma nova escala, no bojo de cujo dinamismo haveria chão para novas formas de expressão13. É a ênfase no "dinamismo" que nos permite observar o vínculo de Siqueiros e Oswald com o futurismo. Sem dúvida alguma, este movimento·seja na sua forma original, seja na sua reencarnação via cubo-futurismo·exerceu um enorme fascínio sobre ambos. Foi um magnetismo paradoxal já que, devido à associação do futurismo com o fascismo, eles resistiram a aceitá-lo em público, sem que o movimento tenha, no entanto, deixado de ter uma influência muito produtiva em suas obras. Com efeito, isso se torna evidente na celebração que eles fazem da vida moderna e da tecnologia, dois temas que percorrem esses manifestos. Siqueiros, por exemplo, declarava de modo entusiasmado: "Vivamos a nossa maravilhosa época dinâmica! Amemos a mecânica moderna que nos coloca em contato com emoções plásticas imprevistas, os aspectos contemporâneos do cotidiano, nossas cidades em processo de construção [. . .]". Oswald, por sua vez, deliciava-se com "as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros. Rails"





5. David Alfaro Siqueiros, "Tres llamamientos de orientación actual a los pintores y escultores de la nueva generación americana", Modernidade: vanguardas artísticas na América Latina, org. Ana Maria Belluzzo, São Paulo: Memorial da América Latina/ Unesp, 1990, p.240. Foi publicado pela primeira vez em Vida americana, Barcelona, n.1, (maio 1921).


6. Oswald de Andrade, "Manifiesto de poesía †palo-del-brasilË," trad. Héctor Olea, 1981, p.2“7. Originalmente foi publicado no Correio da manhã, Rio de Janeiro, 18 de março de 1924, s.p.


7. Oportunamente, Héctor Olea identificou os paradoxos do manifesto pioneiro de Siqueiros (1921) em relação aos outros manifestos da época. Cf. "El pre-estridentismo: Siqueiros, un anti-héroe en el cierne del anti-sistema manifestario", Otras rutas hacia Siqueiros, org Olivier Debroise, (1996), p.91“123. No que diz respeito aos pontos de contato entre o manifesto de Barcelona e os oswaldianos, "pau-brasil" e "antropófago", cf. "Cópia original" e "Construtivismo cézanneano", p.115“116.


8. Siqueiros, "Tres llamamientos", 1990, p.240. Em negrito e itálico no original.


9. Benedito Nunes, "Antropofagia e vanguarda·Acerca do canibalismo literário," Oswald canibal, São Paulo: Editoria Perspectiva, 1979, p.7“38; p.29. Observe que o autor emprega o termo no seu uso corriqueiro.


10. Ramírez, "El clasicismo-dinámico. . .", 1996, p.125“146.


11. "Engenheiros em vez de jurisconsultos," de Andrade, "palo-del-brasilË", 1981, p.4; "[Vivamos] os aspectos atuais do cotidiano, da vida nas nossas cidades em construção, a engenharia sóbria e prática", Siqueiros, "Tres llamamientos", 1990, p.241.


12David A. Siqueiros, "Tres llamamientos", 1990, 241“242; Oswald de Andrade, "palo-del-brasil", 1981, p.5.


13. "[. . .] a base da obra de arte é a magnífica geometria estrutural da forma junto com a concepção, engrenagem e materialização arquitetônica dos volumes e a perspectiva dos mesmos que, no conjunto, criam uma profundidade: †criar volumes no espaçoË [. . .]", Siqueiros, "Tres llamamientos", 1990, p.242; "Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz.", Oswald de Andrade, "palo-del-brasil", 1981, p.6.


14. Siqueiros, "Tres llamamientos", 1990, 241. Em negrito e itálico no original; Oswald de Andrade, "palo-del-brasil", (1981), p.6.