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(continuańŌo)

O propósito do credo artístico-ideológico aventado ora pelos "Tres llamamientos" ora pelo "pau-brasil" não tinha somente o ensejo de atualizar formas de expressão no México e no Brasil. Era, ao mesmo tempo, a base para um projeto radical de cultura no nosso continente, proposto por meio daquela vanguarda. Ambos os manifestos anunciavam já o ímpeto transgressor, pelo qual eles procuravam desafiar a autoridade da idéia de cultura eurocêntrica. Esse tipo de transgressão, contudo, estava enraizada em uma paradoxal recuperação de dois elementos díspares: as nossas civilizações indígenas no Novo Mundo e os meios tecnológicos desencadeados pela modernização. As múltiplas referências de Oswald à "raça crédula e dualista" e, logo após, aos índios tupi, do mesmo jeito que a admiração de Siqueiros pelas sociedades pré-colombianas (principalmente a maia e a asteca), assinalam a crença em uma Idade de Ouro, cujo grau de civilização, segundo eles cismavam, igualava ou ultrapassava na sua época a de seus contemporâneos15. Ficava claro para Oswald que, depois de realizada a etapa inicial do modernismo brasileiro, a tarefa a seguir era outra: "Ser regional e puro em sua época".16 Já para o mexicano, a meta a ser focalizada no futuro era, também, a de "nos propor uma aproximação com as obras dos antigos habitantes dos nossos vales, os pintores e escultores indígenas (maias, astecas, incas, etc.)" cuja obra vigorava ainda em todos os princípios de síntese e equilíbrio que a arte contemporânea procurava emular. De modo concomitante, Siqueiros rejeitava os falsos "nacionalismos", ou ainda os "arqueologismos", em favor do direito dos mexicanos e latino-americanos de se expressarem por si próprios, muito embora dentro dos parâmetros internacionais. De acordo com isso, ele aconselhava os artistas do continente a entenderem que o fato de "ser modernos e internacionais, primeiro e antes de mais nada", não poderia desviá-los da meta básica: "É preciso a contribuição de valores artísticos saídos de nós mesmos para uma estética mundial".17

Poder-se-ia argumentar que a tensão gerada entre o passado indígena e o futuro dominado pela tecnologia, no âmago do seu projeto radical, achava sua expressão genuína naquela noção chocante da utopia regressiva. Com essa forma de utopia, Siqueiros e Oswald exemplificam o recurso da contradição como sendo uma estratégia político-ideológica bastante produtiva. A tensão gerada entre o passado pré-cabralino/pré-colombianoĘlivre ainda da dominação européiaĘe a sociedade tecnocrata do futuro é a força motriz que estimula a necessidade deles, ora de escrever, ora de teorizar sobre a arte. Essa mesma tensão levou-os à ponderação simultânea da sua visão utópica do presente face à realidade do seu momento histórico. Da tensão decorrente do mítico e do histórico é que surge, então, uma nova visão crítica, teórica e criativa da arte para o nosso continente. Nesses parâmetros, o projeto deles insinuava um paralelismo total com o de Mário de Andrade, seu contemporâneo. Segundo Mário afirmava, "somos os primitivos de uma futura perfeição".18 Da perspectiva proposta, o desafio então era o de aviar tanto a produção quanto a exportação de produtos culturais genuínos. As artes no México e no Brasil deixariam de ser periféricas para virar uma força produtiva riquíssima e uma matéria-prima "exportável". Dessa maneira, o papel que a tecnologia estava fadada a desempenhar seria o de propiciar novas formas de intercâmbio entre as sociedades do Velho e do Novo Mundo. Como resultado dessa troca, "a universalidade da época deixaria de ser excêntrica para tornar-se concêntrica; o mundo se regionalizara e o regional continha o universal".19

Os paralelismos destes modelos de vanguarda são constantes. No entanto, eles vêm se acentuando mais nos escritos do fim da década de 20 e início dos anos 30, particularmente no "Manifesto antropófago" (1928) e no prólogo a Serafim Ponte Grande (1933) de Oswald, se comparados com "Rectificaciones sobre las artes plásticas en México" [Novos pensamentos nas artes plásticas do México] (1932). As suas afinidades estão relacionadas ao jeito com que ambos procuram assimilar (pro domo sua) o legado artístico e cultural de Ocidente; e isto é feito sob uma profunda confiança na herança cultural recebida, assim como num certo otimismo no futuro. No "Manifesto antropófago" oswaldiano, a recuperação das culturas vernáculas, iniciada antes no "pau-brasil", é elevada, mesmo por meio do exercício simbólico do canibalismo, a uma inquestionável prática cultural. De forma artística, Oswald propunha a "devoração" radical dos modelos existentes na literatura, na filosofia e nas artes como antecedente fulcral para a constituição de um movimento alicerçado num ethos regional específico. No caso de Siqueiros, o tipo de assimilação da proposta oswaldiana funcionaria, seja por meio da noção de mestiçagem, seja pelo estatuto aparentemente absurdo de uma vanguarda apoiada na tradición. Bem no começo, Siqueiros acreditava numa arte que pudesse entroncar os aspectos menos estereotipados da nossa herança continental racial e cultural. Desse jeito, tanto nos "Tres llamamientos" quanto nos escritos das décadas de 20 e 30, ele postulava uma redefinição de tradición, representando uma total inversão do que foram as suas funções no bojo do modelo eurocêntrico. Evitando referências a sistemas culturais rançosos (sociedades do tipo ancien régime), a tradición para Siqueiros era "o acúmulo de experiências" advindas dos movimentos artísticos da Europa e da América que servissem como alicerce para a obra do artista latino-americano. Entendida nesses termos, a tradición foi sendo associada à idéia de um vasto receptáculo ilimitado para a arte do Novo Mundo20. Em ambos os modelos, o resultado assinalava uma noção híbrida de vanguarda, na arte e na cultura, que repudiava a cópia em favor da apropriação simultânea tanto das fontes européias quanto das indígenas.





15. "A gente encontrará, mesmo, na obra dos índios da nossa América, o complemento metafísico inerente a todas as grandes obras do mundo e do tempo.", Siqueiros, "Rectificaciones sobre las artes plásticas en México", palestra ministrada no fechamento da exibição feita na Galeria do Casino Español da Cidade do México, 18 de fevereiro de 1932, Raquel Tibol, "Documentación sobre el arte mexicano," México: Fondo de Cultura Económica, 1974, p.37ō52; republicado em Art & revolution, trad. Sylvia Calles, Londres: Lawrence and Wishart, 1975, p.26ō37; p.31ō32.


16. Oswald de Andrade, "palo-del-brasil", 1981, p.7.


17. David A. Siqueiros, "Rectificaciones. . .", 1975, p.33.


18. Apud Benedito Nunes, "Antropofagia e vanguardaĘacerca do canibalismo literário", Oswald canibal, São Paulo: Perspectiva, 1979, p.25. Na verdade, Nunes cita o "Prefácio Interessantíssimo", de Paulicéia desvairada (1922), em que Mário de Andrade diz: "Somos na realidade os primitivos de uma nova era".


19. Nunes, "Antropofagia ao alcance de todos", Obras completas de Oswald de Andrade, VI, Do pau-brasil à antropofagia e às utopias, 2a. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p.xxiii.


20. Siqueiros, "Towards a transformation of the plastic arts: plans for a manifesto," Nova York, junho de 1934, republicado em Art & revolution (1975), p.45.


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