(continua��o)

A melancolia da paisagem

A pintura de Reverón poderia ser o modelo explicativo de uma modernidade que não responde, pois, a um projeto nem a uma busca que é puro efeito de uma experiência, conseqüência de um processo cuja lógica seria aquela do irreparável. É nesse sentido que os processos e seus efeitos plásticos respondem mais em sua obra à noção de "regressão" do que à noção de "desconstrução" (que poderia lembrar Mondrian) ou de "redução" (que poderia lembrar Malevitch). Mas também porque a "regressão" tem, por oposição à "desconstrução" ou à "redução", um valor puramente "corporal", um recinto e um destino que, como a pintura de Reverón, se identifica com a física do próprio corpo.

Os efeitos modernos da obra de Reverón�uma pintura tornada cega, uma pintura abnegada, uma objetividade manifesta�só se explicam a partir dessa centralidade do corpo, cujas fases terão sido três: exposição ao visível e ao que o constitui como visibilidade, a luz; opacidade espectral, "eclíptica" dos corpos; despojos, coisas, objetos. Curiosamente, no centro da obra de Reverón estão os corpos representados como presenças adormecidas de sombra, como volumes flácidos, como atonia orgástica e sonhada, como simples bonecas de pano, equivalentes antropomórficos do desnudamento do suporte em sua pintura. Reverón se ocupou em pintar, na exata metade de sua vida de artista, uma série de obras nas quais representou�e com elas representou-se a si próprio�figuras femininas, banhistas repousadas, belas jovens nuas, bonecas. A arquitetura figurativa dessas cenas corporais é a mesma das grandes banhistas que de Courbet a De Kooning�sem esquecer essa emblemática desconstrução figurativa do julgamento de Paris que foi o Almoço de Manet7�marcaram emblematicamente a pintura ocidental no início da modernidade. A arquitetura simbólica dessas obras é, pois, a de uma "cena primitiva", que se consome como metáfora iconológica do término desse processo de "regressão", por meio do qual Reverón, expondo seu corpo perceptivo à paisagem, conclui revelando em suas obras o puro corpo da pintura.

Esses corpos femininos, esses substitutos do desejo e da paisagem, essas figuras cujos olhos caem, enfadadas, e que nos olham num quase adormecer, estão representadas nesse recinto que Reverón terminou por construir contra a luz. São as moradoras da sombra, mulheres à beira do túmulo, damas da morte. Desde então Reverón evitou sistematicamente as horas fulgurantes de luz, a cronologia do ofuscamento. Com esses corpos, Reverón se despediu da luz do meio-dia e procurou na paisagem as horas da noite ou do amanhecer, no momento em que os dias se tornam fracos, para substituir a presença apocalíptica de uma visibilidade excessiva pela figuração da paisagem, pela paisagem possível, brevíssima, da mutação luminosa; pela paisagem de transição�matinal ou vespertina�na direção das sombras. De tudo isso�uma visão que pondera a imensidão da terra e que extenuada tenta sua possível imagem�fica o testemunho de um olhar afogado na melancolia da paisagem: "geo ponderat"8.

Reverón substituiu, na sua obra final, a estabilidade martirizante da plena luz por essas paisagens melancólicas da mudança, da mutação, da transição existencial. Elas são, na sua prodigiosa impressão de brevidade do sol nascente ou em sua escritura agônica do falecimento da luz, metáforas paisagísticas de um olhar encarnado como alma, rastro de um estado físico da alma. A pintura de Reverón não responde, pois, a uma retórica do sublime, não é o irrepresentável, nem a utopia da luz, o que a movimenta e a constitui como visão. Afogado ante a imensidão da paisagem, ante o abismo da representação que a luz perfurada, socavando a possibilidade mesma da pintura, Reverón procurou o possível�não o impossível�na pintura.

E o possível é um instante brevíssimo de tempo, um passo incessante das sombras à luz, da claridade ao sombrio, uma paisagística do momentum cujo trabalho consiste em agarrar o "corpo brando" da paisagem, a ocasião inadvertida em que já não opõe resistências�o kairós�para se converter em resto, em pegadas, em relíquia pictórica. Não são essas as luzes dilatadas, largas, eternas do Norte e do Sul: tudo o que tenha sido exposto a elas nas coordenadas equatoriais sabe que sua contemplação só é possível como uma mútua combustão, "como reminiscência de ter visto no esquecimento do que [se] viu. . ."9

Essa relação com o tempo�em suas instâncias e em seus instantes de mudança�é o específico das paisagens reveronianas e é também o especificamente melancólico que jaz, ou emerge nelas. A melancolia emerge como uma mancha nessas vistas do playón, nestas paisagens espectrais do porto: emerge�mais ainda do que se inscreve�como uma sombra espessa, como um rubor cinza na pintura, como uma névoa nos olhos. Haveria ali uma teoria do adormecimento da visão, que é todo o contrário daquela inicial, branca, do ofuscamento. Haveria, sobretudo, uma teoria da escritura pictórica da melancolia: pequenos redemoinhos do trópico que Leonardo teria sonhado em suas aventuras alpinas representam indistintamente a fumaça da indústria, a mercadoria dos portos, os homens que se afanam, as videiras da praia, os sulcos nos quais já não se distingue mais a luz da água, a secura da terra e a umidade das margens; o sexo das mulheres que são misturas de trapo; os olhos cujo pesar cai sobre o que fica na pintura do mundo um instante depois, ou um segundo antes, que o dia surja irreparável com seu fogo branco e deixe o deserto�absolvido de habitantes que se refugiarão em outras sombras�à paisagem: "Daí a lentidão de uma �escrição�, o pesar de uma descrição que se afoga e se perde na vaguidade das circunscrições: �um pouco�, �quase�, �talvez� como se afogam os olhos sem lágrimas e o olhar se tolda na borda das pálpebras [. . .]"10





7. Hubert Damisch, Le jugement de Paris, Paris: Flammarion, 1992.


8. Erwin Panofsky, La vie et l�art d�Albrecht Dürer, Paris: Hazan, 1987, p.254.


9. Pierre Fédida, "La régression, la site de l�étranger", La situation psychanalitique, Paris: Presses Universitaires de France, 1995, p.234.


10. Louis Marin, "De la représentation", Hautes études, Paris: Gallimard, 1994, p.193.