Armando Reverón: antropofagia da luz e melancolia da paisagem
Encontraríamos aí o sintoma de um trabalho "regressivo", que não se limitaria com certeza somente aos assuntos da luz. Tudo parece indicar que, obviando as alturas de uma iconografia escarpada da paisagem, Reverón procurou uma paisagem de planícies, de extensões marinhas, na qual se concretizou pela primeira vez na Venezuela uma pintura de qualidade formal plana, um fazer pictórico que encontraria, sob a aparência de um deserto�essa paisagem e essa pintura despojada de meios�essa identificação da pintura com a literalidade de seu "meio" que passa, para certa inteligência formalista, não desprovida de razão, por indício identificatório de uma pintura moderna. Reverón absorveu�dirigiu�toda a luz e fez na pintura o equivalente a uma parábola da visão que tem o enceguecimento como condição de conversão ao visível. Dupla metáfora: metáfora de uma antropofagia de luz e metáfora de uma pintura tornada cega por concentrar nela justamente toda a potência daquilo que a torna possível como arte da visão. Entre ambas, entre a antropofagia da luz e o enceguecimento da pintura�que não é mais que o equivalente vernáculo de uma extenuação "sublime" da representação, auto-reflexivamente exposta ao seu poder e à sua nulidade�está em jogo, pois, uma forma reveladora de regressão: "Chamamos regressão �escreve Freud em A interpretação dos sonhos�o fato de que no sonho a representação retorna à imagem sensorial da qual um dia surgiu [. . .]",4 a que acrescenta lucidamente George Didi-Huberman: "Fora de toda conotação pejorativa ou nostálgica�gênero degeneração ou gênero arquétipo�a regressão aparecia, então, no texto freudiano, como um instrumento teórico mais que clínico, e mais precisamente como um instrumento �tópico�: exigia que pensássemos as condições fundamentais de um tipo de matéria da imagem à qual, nos diz Freud, a representação justamente retorna".5 O que se vislumbra, no final desse incendiário processo de pintura, o que fica no final dessa queda de Ícaro nas planícies do Caribe é, justamente, uma gramática pictórica de puros despojos. Tudo conduz a paisagem em Reverón até seus rastros, rastros de luz que são sombras; rastros de pintura que são gestos expostos do trabalho da arte e da física mesmo do ato pictórico. Tudo conduz a paisagem em Reverón até o deserto, que é, por ser uma imagem sensorial, por estar figurado depois do abnegadamente sensível, a partir do qual se constitui toda imagem, a matriz mesma da paisagem e seu paradigma gerativo. Esse paisagismo é literal, e o é em dois sentidos complementares e opostos: trata-se de uma paisagem literalmente fiel ao que fica na combustão retiniana do olhar quando se olha sem mediações protetoras para o astro da luz equatorial�um enceguecimento�; trata-se também de uma pintura�de um aparato de enunciação pictórica�literalmente exposta, revelada em sua literalidade mais básica: economia de gestos, ameaça de o visível estar�ficar�impresso como num sudário. "Padeceria de um risco mortal o pintor que quisesse com a Imagem oferecer a luz ao olhar, porque seria condenado a perder a vista, cegar-se num ofuscamento puro, no qual se consumiria toda forma; porque seria condenado a perder a obra em si onde a imagem encontra a exatidão de seu poema, a querer fazer dela a expressão pura do estado possível de seu ser visto."6 Esse tem sido o risco pictórico�e a decisão�reveronianos. O que ficaria dessa experiência incendiária da paisagem, como de toda aventura extenuante, a não ser um campo calcinado, a cenografia pictórica de uma melancolia da paisagem? Porque a empresa reveroniana, longe de ser tão heróica que se pode imaginá-la além das experiências excêntricas do personagem rodeado por um mundo inédito e teatral, consistiu, sim, em empreender essa impossível paisagem da luz, estabelecendo crivos, enramadas, gelosias, corpos espessos de sombras que o protegessem�e a nós em sua pintura�dos perigos daquela primeira e fulgurante digestão de luz equatorial, e entre eles, do último risco que pode correr toda pintura: o do enceguecimento capaz de consumi-la. Ficaria também um modelo estranho, irreconhecível, para a aventura moderna da pintura na Venezuela e na América Latina. Um modelo que conecta, sem transições de época, o último paisagismo impressionista adiado na América equatorial com a primeira absorção monocromática e que estabelece essa América como terra de uma pintura de formas puras, indiferente, a uma relação ótica, perceptiva, fenomenológica, corporal com o mundo concreto e concretamente com o mundo natural.
Modernidade orgânica Armando Reverón inaugurou portanto, inadvertidamente, uma versão inexplicada�e por acaso inexplicável�da modernidade, cujo destino não é menos formal, não é menos absorto nem menos indiferente, mas cujo meio, cuja possibilidade reside em uma inexorável transição corporal. Aqueles que viram Reverón pintar sabem dos mitos e crenças que tentava evocar ou exorcizar por meio de um ritual de dança e concentração, que tinha como centro obsessivo seu próprio corpo. Amordaçado por trapos que o prendiam com violência, a cintura�a metade�do corpo era como a projeção do horizonte nas suas paisagens. Poder-se-ia pretender, não obstante, que essa paisagística, próxima ao desvanecimento�porém nunca à imaterialidade�, esteve profundamente assinalada pela presença viva, pela experiência ansiosa dos limites do corpo. Trata-se de uma paisagística do possível, de uma visibilidade peneirada�opaca�pela surdinas do corpo. Dessa maneira, o que em outros lares foi um paradigma ideal, uma equação, uma abrupta criação do espírito�a saber, a pintura como um campo aberto e despojado, a evidência reveladora de sua utilização do plano, a materialização denunciante de seus meios e de seu medium �foi em Reverón pura resignação, pura subjetividade, submissão corporal ao perceptível que irreparavelmente se concretizava na pintura. Com isso, nosso monocromo foi e é uma paisagem da praia do Caribe�uma realidade, não um conceito espacial�assim como nossa redução da pintura a seu logaritmo da espacialidade foi um espaço existencial, sensivelmente representado �uma duna, uma enseada, um playón�no qual as irregularidades artesanais e precárias do suporte serviram de ocasião�de kairós pictórico�ao holocausto da mímese pictórica. O modelo dessa primeira paisagística da luz é, pois, o de um eclipse. Reverón se expõe como Ícaro ao sol, para deixar que suas obras se constituam com a luz que vislumbra pelas bordas da opacidade de seu corpo. Em mais de um de seus quadros aparece assim: à contraluz, opondo sua massa corporal identificada ao deserto da tela contra a luz, que ao filtrar-se desenha, como uma certa lenda antiga, os contornos na tela. O mito de um encontro heróico com a luz deveria, portanto, ser matizado: Revéron não só pintou com resplendor, também e sobretudo o fez com sombras. Desde muito cedo, paralelamente à construção de uma casa magnífica que foi se tornando um lugar ameno e um jardim, uma arcádia tropical e um túmulo umbroso, Reverón foi inscrevendo em sua pintura gelosias, foi construindo sua pintura como um crivo: Luz tras mi enramada [Luz atrás da minha ramagem], assim se intitula uma dessas obras, poética entre todas as da primeira operação reveroniana, de aproximação e de distanciamento em relação à luz. Reverón desenvolveu a pintura, sem deixar de ser fiel ao mundo e ao visível fenomenal, até o estado primitivo, onde só se vê sua materialidade desconstruída, a matéria virtual de sua imagem. El árbol [A árvore] é o emblema e o resultado desse processo: gotas de luz sobre o chão do suporte, pontilhismo desconstruído, desprendido, indolente, exacerbado, sumo de um desaparecimento que teria o rastro das coisas na mímese pictórica como condição do aparecimento das tramas da pintura em estado de possibilidade pura: "a verdade em pintura". Tudo leva a pensar que o escurecimento da luminosidade do primeiro Reverón é o início de um processo pictórico marcado por certo "padecimento", que não apenas mostraria o possível, mas também o irreparavelmente visível por meio de um paisagismo "patético", posto que foi a conseqüência de uma pura "paixão ótica": ir da pintura ao suporte; ir da grafia das figuras à sombra das coisas; do icônico ao indicial, isto é, do que se escreve ao que se inscreve, ao que se imprime; do que se traça voluntariamente ao que involuntariamente macula. O resultado de tudo isso, ao conter insuspeitas conseqüências teóricas, é que a monocromia�e não o monocromo�apareceu na América com Reverón, como um acidente da atmosfera, como uma catástrofe de luz e, enfim, como uma "ruína" da paisagem. Poderíamos precisamente evocar o modelo da "ruína" para compreender o que existe na paisagem reveroniana de deserto. Algum teórico da arquitetura do grande século barroco, gravitando ao redor de Vitrúvio, chegaria à conclusão de que a ruína, como restos sobre o pó dos traços de um edifício, seria justamente aquilo que mais se aproxima do plano original da edificação: a ruína coincidiria, articularia e "suturaria" existencialmente o período ideal com o resultado final do edifício. A "ruína" seria, pois, a matriz teórica do edifício. O mesmo pudesse então se pretender da paisagem quando, como em Reverón, só ficam seus rastros no holocausto da luz. Ficaria o que está subjacente e o que transcende em toda paisagem: a extenuação de onde surge, uma planície (de pintura) absoluta, um deserto. Como em El playón, de 1942, as protuberâncias acidentais do suporte�uma sutura grossa na tela, uma excrescência da matéria, uma cercania tópica do subjectum�são as ocasiões para convocar o olhar de quem olha na direção da luz, que não é imaterialidade, mas precisamente excesso de matéria, puro resto, sobreabundância e suplementos pictóricos. A pintura de Reverón constitui sobre a evidência desse grão de materialidade o chão estranho, irreconhecível, de uma modernidade orgânica. Aí, nos interstícios indefiníveis entre o espaço despojado da representação e a representação obcecada do espaço, a pintura de Reverón atinge seu duplo valor de pintura e de representação, de imagem e de matéria da imagem, de figura e de figuração. 4. Sigmund Freud citado por Georges Didi-Huberman, La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille, Paris: Macula, 1995, p.250, nota 4.
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