Contenção e caos: Eva Hesse e Robert Smithson


Duas figuras catalíticas: uma mulher nascida em 1936, um homem nascido em 1938. Situados artisticamente num momento em que o cenário nova-iorquino de arte se transformava da expressiva abstração painterly [de alta qualidade técnica e estética] dos anos 50 em formas minimalistas, racionais e ponderadas, e em planos conceituais dos anos 60 e início dos 70, Eva Hesse e Robert Smithson tomaram rumos independentes, que mudaram sensivelmente o curso da arte contemporânea. Os trabalhos introspectivos que ela faz obsessivamente à mão em seu estúdio; a remodelação do terreno que ele empreende com equipamento de escavação in situ. Um inventor da arte de instalação, da "arte da terra". Hesse morreu de câncer no cérebro aos 34 anos de idade; Smithson morreu num desastre de avião aos 35 anos, quando trabalhava no projeto Amarillo ramp [Rampa de Amarillo], no Texas.


Eva Hesse
A arte de Eva Hesse é a arte do corpo: a forma feminina exterior, sua própria psique interior. Trata-se de uma absorção deliberada no eu: consumir o eu para encontrar a identidade-não no sentido cultural dos anos 90, mas de modo profundamente pessoal-para então materializá-la em forma de arte. "A arte é uma essência, um centro."1 A procura do pintor abstrato-expressionista para expressar seu pathos interior, que havia adquirido proporções míticas desde os anos 50, constituiu um precedente para as reflexões de Hesse sobre identidade. Ainda assim, a artista precisava romper com aqueles progenitores masculinos e com o quadrado: a moldura expressionista, os quadrados-dentro-de-quadrados em cores, feitos por seu professor Josef Albers, o quadrado minimalista e o cubo da mesma tendência, produzidos por seus colegas e contemporâneos, o contêiner de estilos artísticos, a imagem do artista de sexo masculino. Em sua busca pelo eu e pelo feminino, Hesse precisava encontrar formas ainda desconhecidas, formas que resistissem a se fixar permanentemente. Assim, transformou o poder emotivo do expressionismo abstrato, o formalismo "científico" de Albers e a pureza e rigidez do minimalismo num vocabulário pessoal (ou "excêntrico", como os críticos o denominavam na época). Consumindo e metabolizando história da arte, Hesse criou com seu trabalho um espaço no mundo artístico, tanto para si própria, quanto para as gerações de mulheres que a sucederam.

Para Eva Hesse, a ingestão e digestão do passado eram um ato interno, total e autodefinidor. "Pintarei contra todas as regras que eu ou outros tenhamos invisivelmente criado. Oh, como elas penetram total e completamente."2 Assim como Louise Bourgeois, Hesse revolucionou a arte ao revelar o eu interior em esculturas sensuais e sexuais, que tinham o corpo como referência. Como nas construções sensuais de esculturas-corpo de Lygia Clark, começou por romper com o plano pictórico para ocupar o espaço. Para sair do passado, a artista utilizou materiais que não pertenciam à história da arte convencional. Incorporou pintura à escultura: a pintura foi para as paredes das construções, depois para o chão, e finalmente voltou à parede para relacionar-se com o entorno. Suas superfícies escultóricas também têm uma sensibilidade painterly. As superfícies ricas e luminosas são construídas em camadas; Hesse trabalhava espontaneamente à mão, da maneira como um expressionista manejava a tinta sobre a tela. Ao assimilar e retrabalhar a idéia da pintura para alcançar seus próprios objetivos, foi capaz de conservar a marca e a evidência da própria mão, assim como também a tendência expressionista para a qualidade emocional. Esta orientação se contrapunha à prática pós-ateliê de sua geração de artistas, seu abandono do toque do artista, até mesmo do objeto de arte.

Hesse fazia parte da vanguarda, possuída pela necessidade moderna de criar por meio da transgressão de regras, instigada a articular sua identidade individual como artista e pessoa, levada a criar um todo novo a partir das partes que herdara. Ela sabia que, primeiro, teria de ser bem-sucedida no sistema de arte convencional-aprendendo a pintar, inserindo-se no mundo da arte de Nova York. Trabalhando dentro da estrutura da arte, poderia descobrir os limites da arte, localizar suas margens, e então transferir-se para fora deles. Trabalhando sem regras fixas, poderia trazer para a arte e o fazer artístico aquilo que anteriormente era definido como marginal. Trabalhando à margem do sistema artístico, era levada a questões fundamentais que desafiavam a noção de arte: O que é uma obra de arte? Quando se pode chamar algo de arte? Assim, Eva Hesse logrou assumir uma posição de poder porque operou dentro e fora, fazendo uma arte derivada de outras a partir de sua notável inventividade.

A artista teve de construir um novo sistema para sua arte. Entretanto, não permitiu que esta adquirisse um efeito totalizante, transformando-se num universo fixo e fechado. Ainda que alternativo, numa situação limite este sistema a teria contido e consumido. Sem seguir regras estabelecidas, a arte de Eva Hesse permanenceu em estado emergente, entre sua materialidade individual e um todo orgânico, maravilhoso e feio, abstrato e figurativo, muitas vezes entre masculino e feminino. "A artista queria preservar visualmente o limiar, onde as partes começam a integrar um sistema mas ainda não o fizeram completamente."3

A transparência de seus meios materiais e a maneira como são construídos mostravam claramente a sua atualidade, revelando a escultura como sendo um conjunto de partes e articulações, e não um todo sem emendas. Para Eva Hesse, o fazer era um ato não-ilusório. "Não seria possível reduzir ainda mais as ilusões sem que os materiais se tornassem o material não-designado da não-construção."4 Além disso, a evidência do processo deu ao seu trabalho a aparência da matéria em curso: um objeto pego num estado momentâneo, com a possibilidade de ser transformado novamente em outro estado. As partes podiam ser redistribuídas, expandidas ou contratadas num determinado espaço: a relação entre elas, embora independente, permanecia em curso devido ao caráter temporário de cada instalação. Os materiais fugidios, impermanentes de Eva Hesse também desafiam sistemas de caráter fixo; eles mostram os efeitos dos processos naturais e das forças gravitacionais·pendendo, ruindo, como partes que saem de seu estado de totalidade ou se sujeitam aos efeitos da decadência e deterioração. Contenção e controle foram, na melhor das hipóteses, temporários. Seu trabalho misturava o planejado e o imprevisto: "[. . .] há muitas coisas que prefiro deixar acontecer [. . .]".5 Quando ocorre a transformação, o caos suplanta a permanência. Mas na fragmentação das partes e na natureza cambiável das substâncias materiais ocorre "a desintegração de uma ordem em favor de uma nova"6 e a arte ganha novos significados.

1960 Três pinturas Untitled [Sem título]. Hesse começa pela tinta, o retângulo da moldura do quadro, figuras feitas com formas circulares, seios e ventres inchados, formas arredondadas inscritas num quadrado. 1965 Ringaround arosie [Ciranda]. Um retângulo, ausência de figura, os círculos que agora formam padrões concêntricos, vórtices de energia, seios com bicos, seios e ventre, The Venus of Willendorf [A Vênus de Willendorf], cordões umbilicais, "um seio e um pênis"7·masculino e feminino se tornam uno. Esta é uma pintura escultórica, a junção entre pintura e instalação escultórica. Mas é também a alimentação do eu pelo fazer de um corpo feminino que nutre, redondo e prenhe, que se amarra a esta identidade com cordões, enquanto destrói a imagem do corpo·apagando a semelhança, cortando-a em pedaços·, numa desintegração canibalista do todo.

O quadrado torna-se a estrutura escultórica, um receptáculo para o corpo, o corpo dela própria, em camadas pessoais e associativas. Elementos simples e duros produzidos por outros contêm os elementos sensuais dela: sua mão se mistura com as de outros, e todas estão absortas no trabalho da artista. 1967 Washer table [Mesa de lavar]. A base, criada por seu amigo e artista minimalista Sol LeWitt, é um dispositivo ordenador no qual foram colocadas, porém não rigidamente fixadas, arruelas industriais de borracha, cujas superfícies estão desgastadas de maneira diferente, definidas de forma individual. 1967 Accession II [Acessão II]. Esta caixa perfurada de metal rígido, fabricada industrialmente sob encomenda, serviu de matriz dentro da qual Hesse cortou e enfiou em cordões mais de 30.000 tubos plásticos, moles e flexíveis, uma mistura caótica de "cerdas" parecidas com cabelo. 1968 Aught [Tudo]. Quatro lençóis dependurados na parede da galeria. Suas superfícies são painterly, porém suas formas são escultóricas. Eles estão recheados e despencam, embora estejam contidos por molduras retangulares. 1970 Untitled ("Wall piece") [Sem título ("Peça de parede")]. Acamada pela doença, a artista continuou trabalhando, dirigindo as mãos de outros. No ano em que morreu prematuramente, Hesse ainda confrontava a dualidade de ser: geometria serial e formas orgânicas, contenção e caos. Menos minimalistas do que antes, retirados do chão e recolocados na parede, cada quadro retangular tem sua singularidade única, existindo fora de um sistema rígido de relacionamentos: quatro unidades, cada uma com tamanho e profundidade diferentes e texturas variadas. De cada uma delas saltam cordões, veias que correm com energia e vitalidade para o chão, onde ricocheteiam.

Para Hesse, o uso do quadrado e do cubo fornecia um formato no qual conter a arte, um sistema para fixar a forma, acuar o caos. Quadrado e cubo eram lugares onde se podiam fazer experiências com processos seriais, mas sem ter vinculação com eles; lugares onde expressar o pessoal; um contêiner para ser quebrado, a fim de dissolver o todo, e depois reconstruir o todo novamente. Era um contêiner para pedacinhos de realidade, partes do corpo e da psique, que os contivesse e tentasse retardar sua mudança e desintegração. Contudo, as partes enganavam a contenção: arruelas danificadas, tubos indisciplinados, tentáculos estendidos. Ao mostrar evidências de entropia por meio da decomposição ou degeneração de materiais, sua arte é reabsorvida num estado de não-arte. Hesse resignava-se, e até mesmo filosofava sobre a perda inevitável: "A vida não dura, a arte não dura, não importa".8 Toda ordem é efêmera, a permanência é uma ilusão ideal. O caos consome a ordem. Mesmo assim, o caos possui uma estrutura e, mesmo que não nos seja revelada, sua própria ordem. Em referência a um de seus últimos trabalhos, Eva Hesse disse: "Sua ordem poderia ser o caos. O caos pode ser estruturado como não-caos. Isto sabemos desde Jackson Pollock".9 Em sua arte, Hesse tornou visível a imagem da ordem do caos.





1. Lucy Lippard, Eva Hesse, Nova York: Da Capo Press, 1992, p.205.

2. William S. Wilson, "Eva Hesse: On the threshold of illusions", Inside the visible: an elliptical traverse of 20th century art, ed. M. Catherine de Zegher, Kortrijk, Bëlgica: The Kanaal Art Foundation, 1996, p.427.

3. Wilson, p.430.

4. Idem.


5. Lippard, p.192.


6. Ibid., p.209.


7. Ibid., p.38.


8. Ibid., p.210.


9. Bill Barrette, Eva Hesse: sculpture, Nova York: Timken Publishers, Inc., 1989, p.17.