Francis Bacon: as fronteiras do corpo

"Acontece que sou muito repleto de imagens, muito."

�Francis Bacon, entrevistado por David Sylvester1

 

Aqui Bacon fala como se estivesse empanturrado de imagens, metáfora fácil que expressa uma espécie de gourmandise, uma plenitude resultante de um devorar acrítico. "Tenho gana de viver; e é gana de artista." Em muitos pontos, o trabalho de Bacon toca no tema desta exposição, antropofagia. Ele absorveu imagens de numerosas fontes visuais, tanto "de cima" quanto "de baixo": não só as pinturas de van Gogh, de Rembrandt e de Velázquez, que ele enfrenta e reformula, mas também fotografias, inclusive as de Muybridge, pranchas de compêndios de medicina e de ciências naturais, e fotografias de jornal. Tudo isso era capaz de estimulá-lo, de nutrir sua imaginação e de inspirar respostas em suas pinturas. Muitos aspectos cruciais da pintura de Bacon podem ser relacionados à antropofagia: o fator físico do corpo humano, a realidade da carne e a violência das sensações, que ele seguidamente retrabalha por meio da pintura; a fragmentação do corpo, a fusão dos corpos no ardor do desejo, sua tensão no auge das sensações, corpos revelados pelos raios X ou despidos para o sacrifício (como no tríptico Oresteia).

Na fervilhante imaginação de Bacon, a maior parte dessas imagens era do corpo, normalmente o humano, às vezes o animal. É provável que só uma pequena fração delas tenha sido materializada e, destas, muitas destruídas. Bacon pintava a si próprio, dúzias de pequenos auto-retratos, bustos ou meios-corpos e, mais raramente, a partir de 1956, fez cerca de dezessete auto-retratos de corpo inteiro; pintava amantes e amigos íntimos, nus masculinos, femininos, algumas vezes de sexo indeterminado e, ocasionalmente, de modo chocante, corpos em união íntima. Como o eram para Picasso, o corpo, sua carne e seus orifícios são o grande tema de Bacon, havendo diferenças e convergências significativas nas distorções que ambos fazem respectivamente da figura humana. O que Picasso manipulava e reexprimia nascia do desejo físico e do medo do corpo do outro, assim como de um amor pelos ritmos formais. Para Bacon, há o desejo de intensificar e quase consumir a presença viva do corpo, quer o dele mesmo, quer o do outro, de exprimir na pintura o físico como uma realidade. "As imagens, apenas tento extraí-las de meu sistema nervoso tão corretamente quanto possa." 2

Pintava a si mesmo a partir do espelho ou de fotografias; seus amigos, de fotografias, o que achava preferível, junto com lembranças e associações, à presença física em seu espaço de trabalho. Ficava mais livre assim: "Eles me inibem porque, se gosto deles, não quero praticar diante deles as ofensas que lhes inflijo em meu trabalho." 3 A ofensa, a distorção, é feita em relação à imagem pintada, mas se não fosse uma imagem, não haveria distorção visível. Em outras palavras, não se trata unicamente de uma questão de manusear a tinta com violência, de uma disposição de permitir gestos fortuitos, estrias, manchas e cutiladas desenfreadas de tinta sobre a tela: a pintura de Bacon não é nem expressionista nem abstrata nesse sentido. "A imagem", dizia ele, "importa mais que a beleza da pintura." 4 É vital que o "dano" seja feito à imagem, porque o real buscado por Bacon é aquele do corpo humano em sua inteireza e o mistério daquilo que chamamos de "natureza humana". O corpo humano, que a pintura simultaneamente vela e revela.

"Falar da violência da pintura nada tem a ver com a violência da guerra. Tem a ver é com o esforço de refazer a violência da própria realidade. E a violência da realidade não é unicamente a violência simples à qual você alude ao dizer que uma rosa ou qualquer outra coisa é violenta, mas é também a violência das sugestões inerentes à própria imagem, a qual só pode ser transmitida por meio da pintura." 5

Em um dos primeiros ensaios que escreveu para a revista Horizon, Robert Melville, um dos primeiros críticos a reconhecer em Bacon um artista de importância, associou-o ao cubismo de Picasso e Duchamp, de 1910�12, que era "de longe a mais bela e comovente realização da pintura do século XX". 6 Melville não postulava que a pintura de Bacon fosse anacrônica, pois sustentava, com considerável justiça, que desde então, estritamente falando, não acontecera "nada de novo na pintura"�até Bacon. O que Picasso e Bacon tinham em comum era a preocupação com a "ambigüidade das fronteiras da figura humana no espaço"�preocupação que, como veremos, era tão filosófica quanto formal. Bacon não partilhava da configuração linear/planar daquele momento do cubismo, mas procurava representar, por meio de recursos novos, a interpenetração do corpo e do que o circunda, criando flutuações similares de espaço e formas indefiníveis. Nas pinturas de que fala Melville�as que retratam um homem que passa através de cortinas (como o magnífico Study from the human body [Estudo do corpo humano], de 1949), cabeças consumidas até a metade, com bocas abertas ou olhar esgazeado, formas humanas apanhadas na armadilha de vagas caixas lineares�, é impossível "isolar da feitura aquilo a que a própria feitura dá forma". Melville abstém-se da opinião, que se tornava cada vez mais comum, de que Bacon era o pintor da alienação e do horror.

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Melville também reconhece que, como no cubismo, não se trata da questão de uma "tendência crescente rumo à abstração", como Michael Fried escreveu na Arts Magazine. Fried, crítico filiado à tradição de Greenberg, para quem a pureza dos recursos pictóricos e a negação da "teatralidade" eram de fundamental importância, foi muito mais ambivalente sobre Bacon. Argumentava que o entrosamento da tinta com a imagem muitas vezes não acontecia; sentia que a figura humana e o cenário lutavam um contra o outro e, dada a sua predisposição para a abstração, naturalmente preferia esta: "largos campos de azul ou negro manchado sobre os quais Bacon pintou com um pincel vagaroso linhas simples mas nítidas de um amarelo seco, brilhante[. . .]" 7





1. David Sylvester, Interviews with Francis Bacon, Londres: Thames & Hudson, 1980, p.166.

2. Ibid. p.41.

3. Ibid. p.41.

4. Ibid. p.41.

5. Ibid. p.81. Sempre tive d�vidas se, por "viol�ncia de uma rosa", Bacon quisesse dizer apenas que ela tinha espinhos; uma hist�ria contada por Michael Peppiatt, na biografia que escreveu sobre Bacon, esclarece a quest�o. Este n�o gostava dos vasos de flores artificiais que havia na casa de uma de suas amigas e anfitri�s londrinas. Ao lhe dizerem que elas n�o morriam, ao contr�rio das flores de verdade, ele protestou: "Mas todo o sentido das flores � morrer." Tal como Georges Bataille em "The language of flowers" [A linguagem das flores], era precisamente na mortalidade das flores que Bacon via sua pung�ncia ("farrapos do esterco que cai do c�u"). � claro que ele n�o pintava flores, exceto nos primeiros anos de sua maturidade de pintor, nos Figure studies [Estudos de figura], de 1945-46, em que um buqu� estranhamente formal representa (em certo sentido) um rosto.

6. Robert Melville, "Francis Bacon", Horizon, dezembro de 1949/ janeiro de 1959, p.421.

7. Michael Fried, "Bacon's achievement", Arts Magazine.