(cont.)

Fried notou que o grupo de pinturas baseadas na obra de van Gogh, The painter on his way to work [Pintor a caminho do trabalho] (1888), os Studies for a portrait of van Gogh [Estudos para um retrato de van Gogh], assinalava um momento decisivo, que ele via em termos do aumento de densidade da tinta, o qual estimulava uma configuração global. Embora a paisagem/cenário se ache afirmada de modo sem precedentes aqui, com faixas brilhantes de cor ou cutiladas de tinta, em contraste com os fundos até aqui predominantemente escuros·cortinas, venezianas, gaiolas ou vazios que absorvem ou contêm a figura·, a relação ainda é de tensão e luta. Apesar de agora em sentido inverso, a figura contra o fundo colorido, esse relacionamento ainda é o âmago da pintura: a sombra negra que segue o pintor em seu caminho para o trabalho, na pintura de van Gogh, devora a figura de Bacon.

Se é que se destacam por algum aspecto, as pinturas que se seguiram a esta explosão repentina de cor ampliam a ambigüidade espacial e, simultaneamente, simplificam-na, com os corpos isolados, apertados e espremidos pelo espaço.

A atitude de Bacon em relação ao corpo humano e à própria idéia de "ser humano" tem muito em comum com a do grupo de dissidentes surrealistas reunidos no final dos anos 20 em torno de Georges Bataille e da revista Documents. Bacon iria, muito mais tarde, tornar-se muito amigo de um deles, o escritor e etnógrafo Michel Leiris, que em 1930 publicou extraordinário ensaio em Documents, "LËhomme et son intérieur" [O homem e seu interior], em que se prefiguram certos aspectos das "imagens" de Bacon.

Leiris recoloca a questão da ambigüidade das fronteiras do corpo, acima discutida em relação à distorção e à fragmentação cubista, numa arena filosófica desafiadora; entretanto, ao fazer as perguntas: o que é o homem e o que é a natureza humana, coloca em lugar bem central o problema da representação do corpo. Seu tema ostensivo·e inteiramente consoante com o uso do bizarro, feito pela revista Documents, para questionar a noção de norma·é uma série de gravuras seiscentistas de anatomia, de autoria de Amé Bourdon, tiradas de um compêndio de medicina. Lembrando uma anedota·sobre uma mulher que, repugnada, assistia a um açougueiro que eviscerava uma carcaça de boi, e exclamava "Temos essas coisas horríveis dentro de nosso corpo?"·, Leiris descreve, por outro lado, a extraordinária beleza dessas gravuras de corpos que, esfolados, revelavam músculos e tendões; dissecados, desnudavam nervos e veias. Celebra-lhes a natureza irresoluvelmente paradoxal: descascadas e cortadas ao meio, essas figuras humanas se fazem garbosamente passar por vivas, acariciando o próprio corpo ou displicentemente segurando uma orelha com a mão. Leiris propõe que as superfícies regulares do nu convencional da pintura acadêmica desumanizam o corpo e o deixam completamente destituído do sentido de sua misteriosa realidade.

Em Bacon, há paralelos em diversos níveis: o amor pela parte interna da boca, a pintura de carcaças, que lembram Rembrandt, a ênfase provocadora que põe na beleza da cor do sangue. Mas é também no desafio materialista, que Leiris aqui lança deliberadamente aos valores convencionais atribuídos à natureza humana, que encontramos um eco em Bacon. Leiris é de opinião que a única garantia que o homem tem, de não estar sozinho numa "natureza" estranha e glacial, é a existência de uma "natureza humana", isto é, de criaturas humanas além de nós mesmos; o que importa, porém, não é o companheirismo nem a sociedade, mas a realidade física do corpo; vê-lo, quer se sinta solidariedade, quer animosidade, em relação a ele, é o que nos toca mais intimamente. "No fim, o masoquismo, o sadismo e quase todos os vícios são apenas modos de nos sentirmos mais humanos, em virtude de entrarmos em contato mais rude e profundo com o corpo." 8 É o corpo, com as entranhas e tudo, que constitui a natureza humana.

Em muitos aspectos diferentes, os corpos das pinturas de Bacon são impelidos a extremos: às vezes literalmente, presa de uma sensação violenta, às vezes com os órgãos internos expostos por raios X, como no painel central do Triptych 1976 [Tríptico 1976], às vezes pela manipulação pura da tinta. Particularmente impressionantes são as obras em que a realidade crua do corpo é relacionada à grandiosidade do mito antigo, como no Triptych inspired by the Oresteia of Aeschylus [Tríptico inspirado pela Orestéia de Ésquilo] (1981), em que a figura nua e sem cabeça de Agamenon, no centro, não está apenas nua, mas também com o interior exposto. Aqui poderíamos recordar também a noção de aviltamento, de George Bataille, do contínuo "rebaixamento" das aspirações do homem "no mundo". A oscilação entre a elevação, o engrandecimento, a verticalidade do homem e a sua queda, a redução ao horizontal terreno, é freqüentemente representada nas pinturas de Bacon.

Embora, em certas ocasiões, Bacon efetivamente buscasse na literatura os seus temas, como no tríptico Oresteia, nunca o fazia para formular uma narrativa, para contar uma história. Às vezes, há um espectador na pintura, espiando um casal, como no Triptych inspired by T. S. Eliot poem "Sweeney Agonistes" [Tríptico inspirado pelo poema "Sweeney Agonistes" de T. S. Eliot] (1967). Em "Sweeney Agonistes" de Eliot, cujo subtítulo é "fragmentos de um Melodrama Aristofânico", personagens imorais e intimidadores trocam ameaças e seduções contra uma invocação em off de uma "ilha de crocodilos" paradisíaca:

 

"doris: Você me levará? A uma ilha de crocodilos?

sweeney: Eu serei o canibal.

doris: Eu serei a missionária.

Eu te converterei!

sweeney: Eu te converterei!

Num cozido.

Um bom, pequeno e branco cozido de missionário." 9

 

Não há nada, diz Sweeney, nesta ilha exceto três coisas: "Nascimento e cópula e morte". Ele fala de um homem que assassinou uma menina, e as últimas linhas são uma versão da era do jazz de um coro grego, evocando um terror caçador inominável. O tríptico de Bacon não ilustra o poema de forma alguma, mas expressa um similar mundo assombrado de acasalamentos e aniquilação. Como escreveu Michel Leiris em seu estudo sobre Bacon de 1983, em suas telas há "partes incandescentes, fervilhando energia, em contraste com as partes neutras onde nada acontece". 10 Nesse tríptico, há três pontos de concentração de energia: nos painéis da direita e da esquerda, dois casais·um masculino, outro feminino·estão contidos em suportes-pedestais em uma jaula posicionada contra espaços neutros virtualmente idênticos. Em cada um, parece haver um espelho, um dos quais reflete um observador casual ao telefone. Nesse centro, não há espelho, mas uma janela aberta ao vazio, atrás de uma terrível massa de carne e roupas. Bacon, como Eliot, transpõe os trágicos impulsos do drama grego em ritmos do mundo moderno·sua linguagem e imagética.

Apesar das ocasionais referências a temas poéticos, religiosos ou mitológicos, Bacon negava que estivesse ratificando uma hierarquia tradicional, que coloca a pintura histórica no topo, depois os retratos, as paisagens e finalmente a natureza morta. Concordando que "como seres humanos, nossa maior obsessão somos nós mesmos", sugeria uma ordem diferente, pela qual, como "as coisas são tão difíceis, os retratos vêm em primeiro lugar". 11





8. Michel Leiris, "LËHomme et son intèrieur," Documents, n.5, 2nd year (1930), p.264.


9. T. S. Eliot, "Sweeney Agonistes," Collected poems 1909“1962, London,1963, p.130.


10. Michel Leiris, Francis Bacon: full face and in profile, New York, 1983, p.24.


11. David Sylvester, op. cit. p.63.