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ENTRADAS E ENIGMAS
DO IMAGINÁRIO SURREALISTA
René Magritte
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René
Magritte
Lessines, Bélgica, 1898
Bruxelas, Béjgica, 1967
"La Belle
Captive"
1967 - guache sobre papel
29,8 x 45,2 cm
Coleção Communuté Française de Belgique
ADAGP, Paris, 1998
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O
quê?
Esta
obra é tomada como imagem-semente, ponto de partida deste convite ao aluno
para uma atitude poética e crítica por meio de leituras contínuas, chamadas
aqui como ações antropofágicas contínuas aos enigmas do imaginário surrealista:
Leitura das obras de
arte como antropofagias contínuas;
Magritte e suas inserções
na história da pintura do século XX: o Cubismo, o Dadaísmo e o Surrealismo;
A antropofagia do mundo
pela pintura: um estudo do papel da imaginação produtiva no processo de
criação de Magritte e do Surrealismo em geral.
Por quê?
Magritte coloca em
justaposição em suas telas situações muitas vezes contraditórias apresentadas
de uma forma virtualmente realista. Ao compor imagens paradoxais, dilui
os limites entre o imaginário e o mundo real, questiona as relações entre
arte e vida e critica as fronteiras entre o belo natural e o belo artístico.
O aprendizado do
conceito de leitura da obra de arte como uma "ação" antropofágica, enfoca
o papel da percepção imaginante como inauguradora de um processo aberto
de construção de sentidos, que buscará atingir como desdobramento educativo
final a conscientização poética e crítica em relação ao mundo pelo aluno
estabelecendo inserções recíprocas entre a arte e a vida.
Para quê?
Por intermédio do Surrealismo, inserir no sistema educativo metas e conceitos
de arte mais amplos, ligados ao universo artístico contemporâneo.
Conscientizar sobre
as inter-relações entre a esfera privada, do inconsciente e dos sonhos,
com o mundo público das transformações culturais de nosso século.
Desenvolver uma
nova atitude do aluno perante o mundo da arte/mundo cultural e perante
a produção dos discursos artísticos, que possa resultar em respostas criativas
para a reflexão e conscientização da própria condição humana. .
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Como? (Quando?
Onde?)
Ao
adotar o conceito de antropofagias contínuas e densidade nas oficinas
de criação surrealista, este material busca promover o aprendizado experimental
do processo criativo de Magritte e, por conseguinte, do Surrealismo,
com produção de situações comunicantes (ou situações paradoxais, surpresa)
de metáforas ou enigmas, utilizando a técnica de colagem de imagens
(antropofagia de imagens1) e a "assemblage" (combinação) de diferentes
objetos, para expressar as condições culturais individuais e coletivas
dos alunos.
As oficinas, que são propostas de desdobramentos educativos que estimulam
o exercício da imaginação produtiva e o processo criativo surrealista,
trabalham as seguintes propostas:
construção compartilhada (em equipe) de "assemblages" com objetos significativos
ligados aos sonhos e às visões de mundo dos alunos;
desenvolvimento de
oficinas de criação surrealistas com textos redigidos coletivamente;
produção de imagens
utilizando técnicas mistas de desenho, pintura sobre colagem etc.
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1.
Antropofagia de imagens
As pinturas de Magritte são "colagens pintadas a mão" de acordo
com as palavras de Max Ernst (1891-1976). Trinta obras de Magritte
foram selecionadas pela curadoria de Didier Ottinger para o Núcleo
Histórico da XXIV Bienal, que ilustram a conexão desse artista com
"canibalismo e antropofagia". O sentido de canibalismo de imagens
refere-se ao método surrealista de criação que se apropria e descontextualiza
diferentes imagens passando a fazer parte de uma nova ordem impactante
por seu aspecto enigmático. Justaposição, fusão, canibalismo e antropofagia
são diferentes palavras que remetem igualmente ao processo ou à
metodologia surrealista utilizada por Magritte. Essa fusão "canibal"
de imagens refere-se tanto ao uso de elementos de outras culturas
(não européias) como também à constante recorrência de Magritte
às histórias policiais, aos detetives e desenhos animados. Fundem-se
na obra de Magritte imaginários de natureza diferente, num processo
chamado pelo curador, Didier Ottinger, de "canibalismo fusionista".
Essa dimensão conciliadora de opostos torna-se viável pelo uso da
colagem como modelo estrutural.
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Antropofagia
do primeiro olhar: estranhamento e interação
Construção da experiência estética do individual para o coletivo. A partir
de trocas de visões e reações, desenvolver uma experiência compartilhada.
Mudança de atitude
do aluno como leitor da obra de arte portador de sentidos/significados.
Enfrentamento do desafio comunicativo da obra de arte. Desenvolver no
aluno entendimento e atitude criativa perante o objeto artístico como
um objeto intencional comunicativo.
Desenvolvimento da
percepção imaginativa. Elaboração de relações e decodificações de sentidos
entre experiência sensível e cognitiva.
Ao professor cabe
lembrar a importância de se explorar o primeiro encontro com a imagem
(no caso, a reprodução da pintura de Magritte) como ponto de partida para
um processo de construção de sentidos abertos (leituras/antropofagias
contínuas). Aqui o primeiro sentido é o olhar! Desenvolver a percepção
imaginativa2 e compartilhar visões e versões são
os objetivos específicos na inauguração desse processo antropofágico.
Ao apresentar a
reprodução da obra para os alunos, o professor concentra-se no que se
revela da obra apenas pelo primeiro olhar e primeiro impacto, sem fazer
referências neste primeiro momento ao autor, título da obra ou movimento
artístico (evite até mesmo dizer a palavra Surrealismo3).
A antropofagia
do primeiro olhar/sentir abrange o tempo do encontro com a obra, a vivência
direta das reações diante da obra, o que propõe uma percepção inteira
do objeto/imagem. Este momento é seguido da experiência compartilhada
de construção e interação do grupo com a obra. O que a obra/imagem diz
para cada um, quais foram as primeiras reações dos alunos. Cabe ao professor
conduzir o diálogo chamando a atenção para a importância das trocas de
impressões e expressões pelo grupo.
Em forma de diálogo
com os alunos, o professor pode comparar e tirar partido das diferentes
reações e respostas diante da mesma obra.
Procure instigar
o grupo para a observação dos elementos constituintes da imagem, das relações
entre eles, dos espaços, das cores, das apropriações de coisas do mundo
etc., ao mesmo tempo em que o grupo considera e observa suas próprias
reações diante dos detalhes.
A arte deve ser
apresentada ao aluno como ponto de encontro para trocas em grupo de experiências
do primeiro olhar/sentir. Você não pode estar errado a respeito de suas
reações?
Por meio de detalhes
e pistas o artista chama a atenção para a ordem e a subversão da ordem
lógica ou natural das coisas do mundo totalmente possível dentro do mundo
da arte. Onde ela ocorre está um enigma intencional.
Pode a pintura
ser entendida como um mundo em si, estranho e paralelo ao mundo real?
O aprofundamento
das leituras em forma de diálogos exige a formação de um ambiente de confiança
mútua entre os alunos. A instauração desse ambiente de trocas durante
as leituras será em si um dos parâmetros qualitativos para a avaliação
da aprendizagem. Esta avaliação considera a verificação do fluxo de interiorizações
e expressões dos diversos sentidos multidisciplinares da obra pelos alunos
como articulação e desenvolvimento do pensamento crítico e poético. Pode-se
considerar como medida de aprendizagem ou avaliação qualitativa a participação
dos alunos na construção (fluxo) e expressão de uma reflexão poética/crítica.
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2.
Percepção imaginativa
Segundo Bachelard, "pretende-se sempre que a imaginação seja
a faculdade de formar imagens. Ora, ela é antes a faculdade de deformar
as imagens fornecidas pela percepção, é sobretudo a faculdade de
libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens. Se não
há mudança de imagens, união inesperada das imagens, não há imaginação,
não há ação imaginante. Se uma imagem presente não faz pensar uma
imagem ausente, se uma imagem ocasional não determina uma prodigalidade
de imagens aberrantes, uma explosão de imagens, não há imaginação..."
Como proclama Blake: "A imaginação não é um estado, é a própria
existência humana".
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3.
Surrealismo
De acordo com Giulio Carlo Argan, o Surrealismo (1920) tem
suas raízes no Dadaísmo e no contexto cultural europeu de guerras
e crises do sujeito racional. Ao se estudar o Surrealismo, tem-se
como pano de fundo uma dimensão de desencanto com o domínio da razão
sobre a realidade que dominava a Europa no início do século. O Surrealismo,
em suas origens, busca uma teoria do irracional e do inconsciente
na arte. Seus porta-vozes são os poetas André Breton (1896-1966),
que era também médico psiquiatra, Louis Aragon (1897-1982) e Paul
Eluard (1895-1952). Sob as influências das teorias do inconsciente
de Freud, Breton, juntamente com os poetas da primeira fase
do Surrealismo, vai explorar o universo de imagens do inconsciente,
e dessa maneira trazer para a superfície os conteúdos profundos
do inconsciente. Se o consciente é a região onde se elaboram as
distinções, o inconsciente será por sua vez o centro do indistinguível.
A pintura surrealista irá materializar esse universo de imagens
com colagens, na qual o artista e por conseguinte o espectador poderão
se inserir nesse mundo sem fronteiras entre o real e o imaginado.
As imagens surrealistas são uma enorme fonte onírica de comunicação
vital.
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Freud:
Sigmund Freud (1856-1939) foi um médico neurologista austríaco responsável
pela criação e divulgação da psicanálise. Suas teorias sobre o papel
do inconsciente e dos sonhos no funcionamento da mente inspiraram
os artistas surrealistas a propor novos métodos de criação em arte.
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Antropofagia
cultural: conscientização cultural e admiração
Estratégias/objetivos específicos
Os aprofundamentos
de conhecimento/aprendizagem: passagens para a antropofagia cultural.
Eles devem ser alcançados como parte de um fluxo de questionamentos
e descobrimentos, realizados pelo aluno, que conduzem a um sentido de
"ad-miração", significando que está ocorrendo o processo de construção
de sentidos estabelecidos entre as relações pessoais e as culturais.
Nesse nível, propõe-se
um diálogo entre as percepções (leituras) individuais e o sistema de
signos/símbolos culturais envolvidos na obra. Diálogos também significando
o confronto entre as condições culturais do estudante - leitor da obra
- e a expressão de valores culturais estrangeiros e/ou universais ligados
à intenção comunicativa do artista e ao contexto cultural no qual a
obra foi criada. Daí cabe também ao professor estar atento às oportunidades
de realizar inserções interdisciplinares possíveis.
Participação dos
alunos nos diálogos. Essa participação sobre os conceitos relacionados
à obra são medidas qualitativas de avaliação da aprendizagem, desenvolvimento
de vocabulário e articulação de conhecimentos mais elevados adquiridos
na leitura da obra.
Entradas: sugestões de questionamentos
O que há por trás desta obra
O título da obra,
"Beleza cativa", sugere questionamentos e debates sobre a relação arte
e beleza: o que significa capturar a beleza? O professor pode abrir
um debate sobre a distinção entre o belo natural (a beleza do mundo
natural) e o belo artístico (valores do belo que regem a produção artística
de uma época e de uma cultura). Quais são as entradas e as possibilidades
de inserções desta obra com os problemas da História da Arte (pintura)
e da cultura no século XX?
Crise da "re-presentação"
do mundo real na pintura no século XX (referências históricas ao Cubismo4)
explorada por Magritte em várias obras.
Pistas e enigmas: antropofagias do mundo pela arte/pintura
Explorando o sistema de signos e símbolos da obra:
Comentar com os alunos
como Magritte5 representa metaforicamente o desafio
antropofágico entre arte (pintura) e realidade.
Além desta polaridade
entre o belo natural e o belo na arte, esta imagem pode ser vista como
o ponto de encontro entre várias dimensões (elementos) opostos da existência:
o céu e a terra, os diversos níveis de ilusões da vida, do teatro (o
palco e a cortina) e da pintura (o cavalete).
Qual é o símbolo
de beleza que está cativo?
O céu azul como símbolo
de beleza.
Debater e estudar
com os alunos que outros significados o céu azul pode ter, incluindo
em outras culturas:
símbolo religioso
cristão: salvação e recompensa na eternidade;
para um navegante:
bom tempo;
para um poeta: o
inatingível, a esperança, o imponderável etc.;
O que significa a
esfera escura? Será uma bomba? Um enigma? Uma alusão à Guerra Fria,
que ocorria em 1965, data da pintura?
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4.
Cubismo
Para muitos o Cubismo é considerado o início da arte moderna.
O Cubismo desenvolveu-se em Paris entre 1907 e 1914 a partir das
pesquisas e criações de Pablo Picasso (1881-1873) e George Braque
(1882-1963), influenciadas por Paul Cézanne (1839-1906). Suas experimentações
na pintura estavam ligadas à construção de uma imagem fragmentada
do objeto/realidade. Essas deformações intencionais rompem com os
paradigmas herdados da pintura renascentista; a pintura cubista
abandona o uso da perspectiva, recurso usado na construção da ilusão
do espaço tridimensional na tela ("trompe-l'œil"). Daí o Cubismo
está ligado à crise da representação na pintura européia. Com o
Cubismo, o ponto de vista do artista perante o objeto representado
passa a ser também móvel, não fixo como anteriormente, e conseqüentemente,
junto com a ciência, a arte reconhece a Teoria da relatividade.
O Cubismo conquista dessa forma a autonomia da pintura perante o
mundo real.
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5.
Magritte
René Magritte (Lessines, Bélgica, 1898 - Bruxelas, Bélgica, 1967)
é um dos principais artistas do movimento surrealista, que muito
influenciou a arte latino-americana. Magritte tem especial interesse
pela disfunção entre um significante (elemento-imagem, o texto)
e seu sentido. Daí suas pinturas procurarem causar um estranhamento
pela associação de elementos contraditórios numa única pintura.
As primeiras pinturas de Magritte (1920) foram influenciadas pelo
Cubismo. Ele nessa época também se interessa pelas manifestações
em defesa da arte pura, expressas na pintura liberada da representação
ilusionista do espaço tridimensional. O interesse de Magritte por
situações enigmáticas surge de seu encontro com a obra de Giorgio
de Chirico. Uma outra importante referência para a produção
criativa de Magritte foi o contato com as colagens de Max Ernst:
ambos contribuem para alimentar o interesse de Magritte no impacto
e mistério de justaposição de diversas imagens, formando um cenário
"surreal".
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Giorgio
de Chirico:
(Volo, Grécia, 1888 - 1978): sua produção anterior a 1930 foi muito
bem recebida pelos artistas ligados ao Cubismo e ao Surrealismo; nessas
obras, criou o estranhamento de objetos e de paisagens, colocando-os
em associações não habituais, formando relações inesperadas que causam
inquietações no espectador. |
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Max
Ernest:
(Bruhl,1891 - 1976): artista alemão integrante dos movimentos Dadaísta
e Surrealista. Criou na pintura um processo equivalente à escrita
automática por meio da "frottage", decalcando texturas de tecidos,
folhas, madeiras etc., completando-as na forma de paisagens e de seres
estranhos |
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Glossário
Ad-miração: conceito baseado numa perspectiva de aprendizagem
existencial segundo Paulo Freire, na qual o indivíduo se reconhece
aprendiz dentro de uma relação com algo que lhe é estranho
e que o remete a um processo de conscientização de sua identidade.
"Assemblage":
trabalho tridimensional freqüentemente feito com objetos e materiais
achados, coletados e reunidos em uma única peça, colados
formando uma escultura sem nenhuma interferência de entalhe.
Fotomontagem:
colagem de imagens fotográficas em princípio reunidas ao
acaso ou sem um sentido lógico.
Found objects (objetos
achados): apropriação de objetos do dia-a-dia dentro
de uma nova conotação ou potencialidade de sentidos. Comparar
com "assemblage" ou "ready made".
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Bibliografia
ARGAN, Giulio Carlo. "El arte moderno: 1770-1970". Fernando Torres:
Valencia, 1984. (6a edição.)
BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre a imaginação do movimento.
In: "O ar e os sonhos".
DUBOIS, Philippe. "O ato fotográfico". Campinas: Papirus,
1994.
DUFRENNE, Mikel. O estado poético. In: "O poético".
Porto Alegre: Globo, 1969.
FREIRE, Paulo. "Ação cultural para a liberdade e outros
escritos". 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
GALE, Mathew. "Dada & surrealism". Londres: Phaidon Press,
1997.
NASH, J.M. "O Cubismo, o futurismo e o construtivismo".
Labor do Brasil.
READ, Herbert. "História da pintura moderna". São
Paulo: Círculo do Livro. |