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1.
A fotografia
Segundo Arlindo Machado, "toda fotografia ë sempre um reténgulo
que recorta o visìvel. O primeiro papel da fotografia ë selecionar
e destacar um campo significante, limitž-lo pelas bordas do quadro,
isolž-lo da zona circunvizinha que ë sua continuidade censurada.
O quadro da cémera ë uma espëcie de tesoura que recorta aquilo que
deve ser valorizado, que separa o que ë importante para os interesses
da enunciaçâo do que ë acess�rio, que estabelece logo de inìcio
uma primeira organizaçâo das coisas visìveis". Para Dubois, "com
a fotografia, nâo nos ë mais possìvel pensar a imagem fora do ato
que a faz ser. A foto nâo ë apenas uma imagem, (...) ë tambëm, em
primeiro lugar, um verdadeiro ato ic–nico, uma imagem, se
quisermos, mas em trabalho, algo que nâo se pode conceber fora de
suas circunsténcias, (...) uma imagem-ato, estando compreendido
que esse 'ato' nâo se limita trivialmente ao gesto da produçâo propriamente
dita da imagem, (...) mas inclui tambëm o ato de sua recepçâo e
de sua contemplaçâo. (...) Vè-se com isso o quanto esse meio mecénico,
�ptico-quìmico, pretensamente objetivo, do qual se disse tantas
vezes no plano filos�fico que se efetuava 'na ausència do homem',
implica de fato ontologicamente a questâo do sujeito, e mais especialmente
do sujeito em processo".
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Icônico:
relativo aos signos que representam por semelhança o mundo real. Aqui
Dubois estž falando do "ato ic–nico", diferenciando a imagem considerada
como um objeto em si e a imagem vista como parte de um processo que
envolve todas as fases desde sua criaçâo atë sua recepçâo. |
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Como? (Quando?
Onde?)
Fotografia
é arte?
Ao observar numa Bienal de artes tantos artistas que utilizam a imagem
fotogržfica, por vezes mesclada a outras tëcnicas, no processo de criaçâo
de suas obras, ë comum encontrarmos entre o pöblico questionamentos
sobre o valor artìstico da fotografia. Uma imagem criada em segundos
pode valer tanto quanto uma que levou horas ou dias para ser criada,
usando tëcnicas tradicionais de pintura ou de desenho?
Desde sua criaçâo,
em 1826, hž discuss§es sobre o caržter artìstico ou meramente documental
da imagem fotogržfica. Essa discussâo, resolvida hž muito tempo no meio
artìstico com o reconhecimento das possibilidades de criaçâo envolvidas
no ato fotogržfico, nâo teve suas conclus§es inteiramente assimiladas
pela sociedade atë os dias de hoje.
O uso da mžquina
no processo de criaçâo fotogržfico e o uso dessas imagens como registro
cientìfico e documental associam a fotografia com valores ligados Ç
tëcnica e Ç concepçâo de realidade vigente nos meios cientìficos, distante
do que muitos compreendem como arte. As imagens criadas pela cémera
sâo aceitžveis como provas de acontecimentos atë mesmo em tribunais,
testemunhas imparciais de um fato, como se a realidade fosse transposta
diretamente para o papel pela mžquina.
Por outro lado,
a adoçâo dos recursos da fotografia por diversos movimentos de arte
moderna e contemporénea e a exposiçâo de fotos como obras de arte em
museus e galerias parecem confirmar o reconhecimento social do valor
dessas imagens como arte. O caržter artìstico da imagem fotogržfica
ë determinado pelo fot�grafo, que decide qual vai ser seu tema, seleciona
o enquadramento, o instante e as condiç§es em que a cena vai ser registrada
e determina as caracterìsticas da imagem finalizada pelo processo de
revelaçâo e ampliaçâo.
Converse com
seus alunos sobre o que conhecem ou imaginam a respeito da fotografia,
seu processo de criaçâo, e seu valor como arte. Ap�s a discussâo, o
ideal seria conseguir que visitassem e conhecessem os procedimentos
de um laborat�rio fotogržfico (melhor ainda seria uma visita a um fot�grafo
em seu ateliè). Assim, estarâo mais preparados para observar a reproduçâo
da fotografia, que acompanha o Material de Apoio, ou para visitar as
obras de Mark Adams na XXIV Bienal2.
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2.
Mark Adams na XXIV Bienal
O fot�grafo neozelandès Mark Adams foi selecionado pela curadora
Louise Neri para integrar o m�dulo Roteiros Oceania, apresentando
uma sërie de fotos sobre o ritual da tatuagem samoana, praticada
por imigrantes na Nova Zeléndia. Adams declara: "Estou tâo interessado
na violència dos encontros coloniais quanto na feita ao corpo ao
ser tatuado. (...) Em 1978, a Nova Zeléndia nâo era Polinësia. Nâo
tìnhamos contato com moradores das ilhas do Pacìfico. (...) Estava
interessado em conhecer Paulo como um contemporéneo que estž fazendo
um trabalho interessante, nâo como um tatuador tradicional (...)
fora do tempo e da Hist�ria. (...) Se Paulo e sua famìlia e todos
os outros samoanos uma vez foram 'aquilo que vocè nâo conhece' para
mim, agora eles certamente nâo sâo mais aquilo. Assim, se a disténcia
conquistada pela alteridade ë reduzida ou removida, talvez as discuss§es
sobre quem tem o direito de representar quem e o que diminuam proporcionalmente.
Ou talvez nâo importem mais. Talvez o que seja mais importante nâo
seja a tatuagem como afirmaçâo de identidade e conex§es culturais,
mas simplesmente sua provaçâo como ritual de afirmaçâo".
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Observando
a cena
Peça aos alunos para observarem o que estž acontecendo nesta cena.
Como podemos reconhecer
que isso ë uma fotografia?
Hž algum indìcio
de que o rapaz acaba de ser tatuado?
Por que o homem
tatuado3 estaria de pë e de costas?
Qual ë o foco principal
desta cena? Para onde seu olhar se dirige?
Os dois homens sentados,
que olham para o fot�grafo, estâo fazendo alguma coisa ou apenas posando?
Qual seria a relaçâo entre eles e o homem tatuado?
Como ë o ambiente
em que eles estâo?
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3.
O homem tatuado
A arte da tatuagem ë amplamente difundida em toda a Polinësia,
mas ë na Ilha de Samoa, na Oceania, que essa pržtica permanece mais
forte, apesar da repressâo dos missionžrios no perìodo de colonizaçâo.
Lž, a tatuagem ë reconhecida como um rito de passagem necessžrio
para os meninos adolescentes, que, ap�s terem sido tatuados, passam
a ser aceitos como membros dos aumaga (associaçâo de homens jovens)
e tambëm passam a ter o direito de servir aos matai (os chefes).
Ser tatuado ë uma experiència dolorosa e extenuante: uma ferramenta
similar a um pente ë embebida em pigmento e repetidamente martelada
sobre a pele. Segundo Thomas, ë "um rito de iniciaçâo, representa
respeito aos antepassados, maturidade, conhecimento e poder para
os jovens". A tatuagem ë um trabalho de beleza, que fala da força
interior e da capacidade de recuperaçâo. Ï vista como um tesouro,
um degrau para a masculinidade, que dž ao tatuado poder e respeito.
A tatuagem que se vè nesta foto chama-se pe'a, que tanto pode significar
tatuagem quanto raposa voadora. Os homens sâo tatuados desde
a cintura atë os joelhos. O desenho ë feito com finas linhas paralelas,
zonas mais escurecidas e uma grande cadeia de motivos e estampas
geomëtricas. Dizem que as asas da raposa voadora envolvem e protegem
seus jovens. Assim, a pe'a seria como uma segunda pele, que protege
e dž coragem Çquele que nela foi envolto.
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Tatuagem:
a palavra vem do termo taitiano "tatau", a partir do inglès "to tattoo"
e do francès "tatouage". |
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Fotografar
é recortar um pedaço do mundo
Peça aos alunos que dobrem uma tira de papel (cerca de 15 x 7 cm) em
sua metade horizontal e depois em sua metade vertical. Bem no centro, peça
para que façam um pequeno buraco (nâo mais de 2 mm). Assim, terâo uma tira
com uma pequena janela.
Peça para que aproximem
essa "janela" do olho. Atravës dela, estarâo vendo apenas um recorte4
do lugar onde estâo. Oriente-os para que girem o corpo, sempre olhando atravës
do furo. Dessa maneira, estarâo selecionando cenas de maneira similar a
que faz um fot�grafo. Peça que escolham as cenas que mais gostaram e procurem
fazer um desenho que a represente. Converse com a classe sobre como cada
um escolheu sua cena.
Essa experiència
permite perceber que, quando o fot�grafo resolve disparar o botâo para que
a mžquina funcione, estž decidindo deixar muitas coisas do lado de fora
do quadro: seu olhar seleciona e organiza os elementos que comporâo a foto
de um modo que seja significativo para ele. Investigue com o grupo a diferença
entre a imagem refletida no espelho e a imagem fotogržfica (o Material de
Apoio "A sala de espelhos de Ken Lum: lugar de mem�rias e estranhamentos"
pode fornecer algumas indicaç§es para facilitar essa comparaçâo). |
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4.
Recorte
Ulpiano
T. Bezerra de Meneses comenta que, "afinal, 'arte primitiva' ë coisa
de civilizado... As sociedades complexas ë que desenvolveram categorias
de objetos artìsticos, produzidos por artistas, veiculados num circuito
pr�prio (mercado artìstico, coleç§es e instituiç§es), para uma fruiçâo
basicamente visual. Mesmo produtos de fora desse sistema sâo a ele
sempre incorporados, embora em graus varižveis. E nada hž de mal
nessa digestâo, salvo se ela nâo deixar espaço para as diversas
significaç§es que as mesmas coisas podem apresentar, nas trajet�rias
que cumprem, principalmente fora de seu hžbitat de origem". O escultor
Henri Moore comenta como aprendeu a refletir sobre esse tipo de
arte em suas visitas a museus: "A arte primitiva ë uma mina de informaçâo
para o historiador e o antrop�logo, mas, para entendè-la e apreciž-la,
ë mais importante olhž-la que aprender a Hist�ria dos povos primitivos,
sua religiâo e costumes sociais. (...) Tudo o que ë realmente necessžrio
ë reagir de forma receptiva Çs pr�prias esculturas, que tèm uma
vida pr�pria, independentemente de quando e como vieram a ser feitas,
e permanecem tâo plenas de sentido escultural hoje como no dia em
que foram concluìdas, para aqueles suficientemente abertos e sensìveis
para percebè-las".
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Além
dos limites da foto
Voltando
a observar a fotografia de Mark Adams, solicite aos alunos que descrevam
como imaginam a continuidade desse ambiente alëm das bordas da fotografia.
Como apoio para esta proposta, o professor pode preparar uma c�pia reduzida
da imagem criada pelo fot�grafo com grandes margens brancas a seu redor,
pedindo aos alunos que desenhem nas margens como a cena continua alëm
de seus limites.
Ao avaliar a
experiència com o grupo, procure observar se alguëm se lembrou de incluir
o fot�grafo na cena, se nâo, aponte esta questâo para os alunos e converse
sobre a presença do fot�grafo, do cineasta ou do videomaker oculta em
cada fotografia, cena de filme ou de vìdeo.
A fotografia como revelaçâo de outros mundos
Peça aos alunos para identificarem nesta foto tudo o que eles consideram
como elementos comuns Ç cultura ocidental e os que parecem pertencer
a uma cultura aut�ctone.
Pergunte a eles:
O que esta cena traz
de novo, de desconhecido?
Por quais outros
meios poderìamos conhecer imagens de rituais de outras culturas5,
sem precisarmos ir ao local onde ela ocorre?
O fot�grafo que
assiste e documenta esse ritual de iniciaçâo6, ao
mesmo tempo em que conhece uma manifestaçâo de outra cultura, tambëm
se torna um mensageiro dela para os que vâo ver suas fotos.
Discuta com seus
alunos atë que ponto o fot�grafo estž dentro ou fora do ritual.
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5.
Outras culturas
Segundo Henri Moore, "o termo 'arte primitiva' ë genericamente
usado para incluir a produçâo de uma grande variedade de raças,
perìodos hist�ricos, sistemas sociais e religiosos diversos. Em
seu sentido mais amplo, aparentemente engloba a maioria das culturas
que estâo fora das grandes civilizaç§es da Europa ou do Oriente.
Este ë o sentido em que o utilizo aqui, apesar de nâo gostar da
aplicaçâo da palavra 'primitivo' Ç arte, pois muitas pessoas a associam
a uma noçâo de imperfeiçâo e incompetència. (...) O significado
da arte primitiva vai muito alëm: ë um testemunho simples e sincero,
seu interesse principal sâo as coisas bžsicas e sua simplicidade
vem de sentimentos fortes e diretos. (...) A qualidade mais contundente
comum a todas as artes primitivas ë sua intensa vitalidade. Ï algo
criado pelas pessoas como uma reaçâo direta e imediata Ç vida. Esculpir
ou pintar nâo era para eles uma atividade calculada ou acadèmica,
mas um canal para exprimir poderosas crenças, medos e esperanças.
Ï a arte antes de ser encoberta por adornos decorativos, antes da
inspiraçâo decair em truques tëcnicos e conceitos intelectuais.
(...) O conhecimento da arte primitiva permite uma compreensâo mais
plena e verdadeira dos desenvolvimentos posteriores (...) e mostra
a arte como uma atividade universal e contìnua, sem rupturas entre
passado e presente".
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Civilizações:
cada civilizaçâo representa o esforço cultural direcionado ao aprimoramento
dos valores que norteiam determinado grupo, reunindo e direcionando
caracterìsticas da vida social, polìtica, econ–mica e cultural de
um povo. |
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Glossžrio
Alteridade: o que se refere ao outro. Sensação presente
nos comentários de Mark Adams sobre as "barreiras", as
"cercas" e o "racismo" que existiam e ainda existem
em seu país: "Eu ainda estava desconfortável por ser
um 'euro' com uma câmera".
Autóctone:
nativo, oriundo da terra onde se encontra, sem resultar de imigração
ou importação.
Ego: o eu;
em psicanálise, o termo é usado para se referir à
parte mais superficial da mente, que tem como funções conscientes
a comprovação da realidade e o controle dos impulsos interiores.
Etnografia:
disciplina da etnologia, ramo da antropologia que estuda as diferentes
etnias e estuda e descreve os povos
e sua cultura material.
Iconográfico:
documentação visual que constitui ou completa obra de referência
ou de caráter biográfico, histórico, geográfico
etc.
Inconsciente coletivo:
conjunto de vivências da humanidade, cristalizadas em arquétipos
que condensam as experiências de nossos antepassados.
Polinésia:
parte da Oceania, composta por dezenas de arquipélagos e centenas
de ilhas. As diversas comunidades nativas passaram sucessivamente pela
influência da colonização portuguesa, holandesa, inglesa,
francesa, alemã e americana.
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Bibliografia
ADAMS, Mark. "Depoimento manuscrito à curadora Louise Neri sobre
suas motivações", 31 maio 1998.
AMORIM, Paulo Marcos de. Índios da floresta tropical. "Revista
Geográfica Universal" n.5, 1975.
ANDRADE, Mário de. Do Desenho. In: "Aspectos das artes plásticas
no Brasil". - Belo Horizonte: Itatiaia, 1984.
DUBOIS, Philippe. "O ato fotográfico". Campinas: Papirus,
1994.
FONTANA, David. "The secret language of symbols: a visual key for symbols
and their meanings". São Francisco: Chronicle Books, 1994.
HERKENHOFF, Paulo. "A espessura da luz - fotografia brasileira contemporânea".
MACHADO, Arlindo. "A ilusão especular". Brasiliense: São
Paulo, 1984.
MALLON, Sean. "Ta tatau: tattoo". (Texto enviado pela internet,
pelo curador em ilhas pacíficas Sean Mallon, do Museu da Nova Zelândia/Te
Papa Tongarewa, Wellington.)
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. "Exposição arte plumária
no Brasil." São Paulo: Fundação Bienal de São
Paulo, 1983. (Catálogo da 17a Bienal de São Paulo.)
MOORE, Henri. On sculpture and primitive art, 1941. In: HERBERT, Robert
L (Org.). "Modern artists on art. N.J.: Prentice Hall.
NERI, Louise. Oceania: explorando e não conhecendo. "Catálogo
da XXIV Bienal", São Paulo, 1998.
THOMAS, Nicholas. "Marked man". Artigo sobre a tatuagem na Oceania,
recebido da curadora por fax, sem indicação de fonte. |