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Como? (Quando?
Onde?)
A fotografia
como registro
A
relaçâo de Lygia Clark com a fotografia ë diferente das de outros artistas/fot�grafos
incluìdos no Material de Apoio Educativo, como Clžudia Andujar, Esko
Männikk• ou Seydou Keita. Esta foto de experiència corporal, "Baba
antropofžgica"1
(1973), realizada por Lygia Clark, foi uma das vžrias formas que a artista
escolheu para documentar seu trabalho, entre as quais se incluem textos
e filmagens.
Apesar de ser possìvel fazer uma anžlise dos aspectos formais e simb�licos
da linguagem fotogržfica por imagem, ela nâo foi apresentada pela artista
para que fosse observada como uma obra de arte, mas como registro de
uma experiència coletiva que prop–s como uma forma de arte. A artista
coloca-se como pesquisadora, explorando os limites da relaçâo entre
arte e pöblico2,
envolvendo profundamente as pessoas num processo interativo de criaçâo.
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1.
"Babá Antropofágica"
Segundo Lygia Clark, "tudo começou a partir de um sonho
que passou a me perseguir o tempo inteiro. Eu sonhava que abria
a boca e tirava, sem cessar, de dentro dela uma substéncia, e Ç
medida que isso ia acontecendo eu sentia que ia perdendo minha substéncia
interna, e isso me angustiava muito, principalmente porque nâo parava
de perdè-la. Um dia, depois de ter feito as mžscaras sensoriais,
me lembrei de construir uma mžscara que possuìsse uma carretilha
que fizesse a baba ser engolida. Foi realizada em seguida o que
se chamou de 'Baba antropofžgica', em que as pessoas passavam a
ter carretëis dentro da boca para expulsar e introjetar a baba.
Depois disso s� tive um sonho: ia mais uma vez tirando da boca a
tal baba, atë que tudo o que havia saìdo se transformou em um tubo
de borracha que eu imediatamente introjetei em minha boca. Entâo
eu nunca mais sonhei com isso". "Na fase sensorial de meu trabalho,
que denominei 'Nostalgia do corpo', o objeto ainda era um meio indispensžvel
entre a sensaçâo e o participante. O homem encontra seu pr�prio
corpo por meio de sensaç§es tžteis realizadas em objetos exteriores
a si. Depois incorporei o objeto, mas fazendo-o desaparecer. Entretanto,
ë o homem que assegura seu pr�prio erotismo. Ele torna-se o objeto
de sua pr�pria sensaçâo. O er�tico vivido como 'profano' e a arte
como 'sagrada' se fundem em uma experiència önica; trata-se de confundir
a arte e a vida."
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Lygia
Clark :
(Belo Horizonte, MG, 1920 - Rio de Janeiro, RJ, 1988): artista com
uma produçâo que discute a interaçâo do pöblico com a arte. A partir
de sua participaçâo no movimento neoconcreto, desenvolveu obras relacionadas
Ç poëtica do corpo e aos aspectos terapèuticos da arte. |
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2.
Arte e público
Segundo Frederico de Moraes, "a sacralizaçâo da arte no interior
da cultura ocidental, p�s-renascentista, levou a um distanciamento
crescente entre a obra e o pöblico, estabelecendo entre aquela e
esse uma relaçâo vertical e autoritžria, consagrada no interdito
secular dos museus: 'Pede-se nâo tocar'. Ï evidente que essa proibiçâo
vai muito alëm do contato fìsico, do pegar e do apalpar, ë alguma
coisa de mais profundo, que revela toda uma concepçâo de funçâo
da arte na sociedade. A obra, distanciada de seu autor no tempo
e no espaço, tornada objeto de veneraçâo (e, como conseqÆència,
de valorizaçâo mercantil), reprime no espectador a verdadeira, isto
ë, a profunda satisfaçâo. Com o que perdem os dois, pois a obra
verdadeira tem a capacidade de liberar, no espectador, seu instinto
criador, e este, por sua vez, com sua pr�pria experiència e sensibilidade,
acrescenta Ç obra novos significados. Uma relaçâo autèntica entre
obra e espectador faz deste öltimo um co-criador da obra, um companheiro
de aventura do artista. (...) A partir dos anos 50, essa questâo
da co-autoria passou a ter outro nome: participaçâo do espectador.
O artista era o autor, apenas, de uma estrutura inicial, cujo viver
ou desabrochar estavam fundamentalmente vinculados Ç vontade de
participaçâo lödica do espectador na obra".
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Investigando a fotografia
Para
iniciar esse processo de interaçâo com a obra da artista, partindo de
uma observaçâo inicial da fotografia, sugerimos alguns questionamentos
(acrescente os seus):
Quem são estas
pessoas?
O que elas estão
fazendo?
Por que estão
fazendo isto?
O que é esta
coisa que está por cima da pessoa deitada?
Por que ela não
se levanta?
O que a artista está
propondo?
Esta foto deve ser
considerada mais como um registro, uma informaçâo sobre uma experiència
artìstica, do que propriamente uma obra de arte. Ï fundamental que o professor
acrescente, Ç medida que considerar necessžrio, outras informaç§es sobre
a proposta de trabalho da artista e seu contexto para aprofundar com o
grupo de estudantes os questionamentos das idëias surgidas na percepçâo
da obra.
Olhar
para dentro
Pedir aos alunos
que se sentem de modo confortžvel, fechem os olhos e desliguem-se dos
sons e dos estìmulos externos, concentrando a atençâo no mundo interior
de cada um, investigando suas sensaç§es, suas emoç§es, seus pensamentos,
suas mem�rias, seus desejos...
Logo que abrirem
os olhos, pedir que anotem tudo o que perceberam dentro de si na forma
de um desenho ou de uma pintura.
Se houver possibilidade
de trabalhar com papëis grandes, antes de realizar a atividade anterior
pedir que os alunos desenhem em duplas a silhueta de seus corpos em tamanho
natural, depois pedir que "olhem para dentro" e que desenhem o que percebem
como importante em seu interior dentro das silhuetas de seus corpos.
Conversar com os
alunos frente aos resultados de sua pesquisa3 sobre
seu mundo interior. Comparar o registro que fizeram de sua vivència com
o caržter documental da foto da experiència "Baba antropofžgica", de Lygia
Clark, avaliando na discussâo sua compreensâo de que uma imagem pode assumir
uma funçâo artìstica ou documental.
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3.
Pesquisa
Otìlia Arantes comenta que, para o crìtico Mžrio Pedrosa, "a
arte moderna se debate, mesmo sem o saber, nos vërtices da informaçâo
e da expressâo. (...) Embora afirmando que 'a abordagem fenomenol�gica
prossegue vžlida', reconhece que a intensificaçâo da escala perceptiva,
dadas as possibilidades abertas pela ciència e pela aparelhagem
tëcnica, acarreta em n�s um 'esvaecer fenomenol�gico'. Nâo se pode
mais querer preservar a arte unicamente no émbito da expressâo fision–mica
quando hž tambëm uma obsessâo quase neur�tica dos artistas mais
audaciosos e criativos com a pesquisa".
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Fenomenológica:
relativo Ç fenomenologia, sistema proposto pelo fil�sofo alemâo Edmund
Husserl (1859-1938), que busca a volta "Çs coisas mesmas", procurando
reencontrar a verdade nos dados originžrios da experiència. |
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Investigando
a obra de Lygia
As très
obras de Lygia Clark descritas a seguir podem ser recriadas em classe
pelo professor e seus alunos, adaptadas aos recursos materiais disponìveis,
para a realizaçâo de algumas das experièncias sensoriais4
sugeridas pela artista em sua obra:
1. "Livro sensorial" (1966)
"Livro composto por folhas feitas com sacos de plžstico transparente,
contendo em seu interior diferentes materiais, visando proporcionar
uma leitura sensorial tžtica diversificada. As pžginas sâo recheadas
de elementos destinados Ç leitura tžtil, tais como conchas, pedacinhos
de tubo plžstico, lâ de aço, pedras alternadas com pžginas de alumìnio
rìgido."
2. "Luvas
sensoriais" (1968)
"Luvas feitas de vžrios materiais e tamanhos, usadas pelos participantes,
que seguram bolas de dimens§es e texturas diferentes, levando-os a redescoberta
do tato Ç medida que repetem a experiència sem a luva."
3. "Cabeça Coletiva" (1975)
"Uma estrutura com base de madeira e de armaçâo de arame forrada com
tecido de malha forma uma grande cabeça. Seu interior compunha-se de
pequenos compartimentos que Lygia Clark preenchia com os mais diversos
materiais. Na base havia um orifìcio por onde o participante colocava
a pr�pria cabeça e apoiava a grande cabeça em seu pr�prio ombro.
Essa proposta
foi, inicialmente, chamada 'Cabeça cosmog–nica' pelo crìtico Mžrio Pedrosa.
A cabeça de enorme dimensâo foi construìda no apartamento da artista,
que era constantemente visitado por seus alunos, que foram tambëm acrescentando
novos objetos nos compartimentos da cabeça: frutas, cartas de amor,
biscoitos, sapatos, fitas de pano, bilhetes etc. A cabeça foi aos poucos
se tornando um dep�sito de coisas dìspares. Surgiu entâo seu nome definitivo:
'Cabeça coletiva'.
Posteriormente
foi levada para a rua e foi 'servida' pelos participantes que, grudando-se
em torno dela, retiraram as coisas guardadas em seu interior e comiam
e partilhavam os alimentos. A experiència foi vivenciada com crianças
e adultos que passavam ocasionalmente pela rua."
4. Na visita à Bienal
No espaço dedicado Ç obra de Lygia Clark na XXIV Bienal, o professor
encontrarž diversas obras/experièncias criadas pela artista. Caso ainda
nâo se sinta seguro para construir estas propostas em sua escola, procure
participar desta experiència junto com seus alunos. Experimentž-las
pode ser uma �tima forma de imaginar novas maneiras de criar percursos
educativos para conhecer arte dentro de uma perspectiva que integra
tâo profundamente arte e vida5.
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4.
Experiências sensoriais
Segundo Feldenkrais, "o importante na aprendizagem nâo ë o que vocè
faz, mas como vocè faz. (...) As pessoas que nâo possuem livre escolha
nâo respeitam a si mesmas e sentem-se inferiores Çs outras pessoas
e a si mesmas! Agora, para se ter livre escolha, ë preciso perceber
uma diferença significativa. (...) Aumentar a sensibilidade. E,
desde que a sensibilidade aumenta somente quando o estìmulo ë diminuìdo,
ë necessžrio, entâo, reduzir o esforço. (...) Qualquer coisa que
se aprende com dificuldade, com dor e esforço torna-se inötil; vocès
nunca aproveitarâo essa aprendizagem na vida. Ï por isso que as
pessoas vâo Ç escola e nâo se lembram de nada do que aprenderam.
Pois aprenderam forçadas, Çs vezes com violència, e de maneiras
em que era necessžrio fazer um grande esforço; muitas vezes sentiam-se
envergonhadas e com grande esforço competiam umas com as outras,
Çs vezes atë decorando. Isso nâo ë aprendizagem. Ï exercìcio. Nessas
condiç§es, s� podem fazer uma önica coisa: repetir o que estâo fazendo
atë satisfazer o professor. (...) Do contržrio nâo passam. Repetiç§es
e exercìcios sâo coisas mecénicas, nunca se aprende coisa alguma.
O melhor que fazem ë familiarizar-se com uma önica maneira de reagir.
Deste modo, perde-se a capacidade de melhorar".
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5.
Arte e Vida
Lygia
Clark: "Agora que o artista verdadeiramente perdeu na sociedade
seu papel pioneiro, ele ë cada vez mais respeitado pelo organismo
social em decomposiçâo. No momento em que o artista ë cada vez mais
digerido por essa sociedade em dissoluçâo, lhe resta, na medida
de seus meios, tentar inocular uma nova maneira de viver. Mesmo
no instante em que o artista digere o objeto, ele ë digerido pela
sociedade, que jž lhe achou um tìtulo e uma ocupaçâo burocržtica:
o engenheiro do �cio do futuro... Atividade que nada afeta o equilìbrio
das estruturas sociais. A önica maneira para o artista escapar da
recuperaçâo ë tentar desencadear uma criatividade geral, sem nenhum
limite psicol�gico ou social. Sua criatividade se exprimirž no vivido".
Segundo Ronaldo Brito, "Duchamp arrematava: o ato artìstico
ë diverso da obra de arte, ë irredutìvel ao vago e tantas vezes
retr�grado papel social que a instituiçâo lhe imp§e cumprir. A arte
serž atë a anti-arte, jamais porëm coincidirâo gesto-artìstico e
obra-em-museu. A arte ë, isto sim, uma atividade sem fronteiras,
transgressora dos c�digos mentais vigentes, vinculada Ç experiència
do 'mundo da vida'. (...) O efeito de um trabalho de arte, quando
aparece na plena potència, rep§e em questâo o real. Muito mais do
que uma sensibilizaçâo, um sentimento do mundo, ë a repotencializaçâo
poëtica da existència. E essa repotencializaçâo nâo cabe no museu,
na emoçâo estëtica, no discurso crìtico".
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Duchamp:
(Marcel Duchamp, Blainville, França, 1887 - id., 1968): influenciou
profundamente a arte contemporénea com seus "Readymades", objetos
"encontrados prontos". Expostos em museus e galerias, foram interpretados
como crìticas ir–nicas ao circuito artìstico, Ç noçâo de autoria da
obra de arte e Ç autonomia da arte na sociedade industrial. |
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Diálogo
Pedir aos alunos para descrever as sensaç§es que tiveram com cada obra
de Lygia Clark (recriadas na escola ou visitadas na Bienal). Conversar
em grupo sobre as experièncias vividas individualmente em cada situaçâo
ë um modo de criar condiç§es para que os estudantes percebam o corpo
como um organismo vivo em relaçâo ao espaço que o cerca. Ï importante
esclarecer que ë fundamental que cada um procure manter o clima de respeito
Ç forma como o outro estž se expondo, assegurando o direito ao mesmo
respeito no momento que se expor.
Ressaltamos que,
para desenvolver um trabalho de expressâo corporal6
conjunto com as demais atividades de artes visuais, orientando e avaliando
o trabalho dos alunos, ë adequado que o pr�prio professor tenha desenvolvido
atividades nessa žrea como parte de sua formaçâo, ou que procure a orientaçâo
de um colega com essa experiència.
Ao criar condiç§es
para um envolvimento sensìvel com a obra de Lygia Clark (ou sua recriaçâo),
temos uma referència para nos aproximarmos dos nìveis mais profundos
de nossa pr�pria identidade. O contato com as criaç§es desta artista,
que destaca em sua obra a interaçâo do ser humano com a arte e com a
vida, permite investigarmos os enigmas da individualidade.
Esse reconhecimento
se dž pelas relaç§es de aproximaçâo ou estranhamento que ocorrem na
interaçâo com a obra e durante o dižlogo com o grupo a respeito de suas
sensaç§es e seus significados, pelos confrontos, pelos questionamentos
e pelas comparaç§es em relaçâo ao outro.
Para transformar
a aula num ambiente propìcio ao dižlogo, o professor precisa abdicar
da postura tradicional de autoridade e assumir o papel de mediador e
de orientador do aprendizado dos alunos. Ï necessžrio coordenar a discussâo
deixando claro para os alunos que o principal objetivo ë aprender a
dialogar sobre arte, nâo o "acertar" ou "errar" uma questâo especìfica,
de modo a estimular sua participaçâo sem quaisquer constrangimentos.
Cada obra de
arte comporta uma infinidade de percepç§es e possibilidades de compreensâo;
as possibilidades de leitura serâo ampliadas a partir de suas pr�prias
dövidas e necessidades reflexivas e das manifestas por seus alunos durante
a realizaçâo deste percurso.
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