.

Leonilson: "Rios de palavras"

.
José Leonilson
Bezerra Dias

Fortaleza, CE, 1957
São Paulo, SP, 1993





"Rios de palavras"
1987 - tinta acrílica sobre lona
196 x 103 cm
Coleção Marcantonio
Vilaça, São Paulo

O quê?

Arte e linguagem;
figuração pessoal de caráter intimista, autobiográfica;
representação do corpo, saúde e sexualidade.


Por quê?

O ensino da arte possibilita a construção de um olhar atento, pessoal e crítico sobre a produção artística, pois instiga à investigação a partir das pistas presentes na obra e leva à formulação de hipóteses possíveis sobre as evidências que nela se apresentam. Segundo Genette, o contato com a arte propicia um encontro ativo entre a intenção do artista e a atenção do espectador. Esse encontro se constitui num diálogo significativo.
A leitura da obra "Rios de palavras", possibilita introduzir uma reflexão sobre a linguagem, os elementos que compõem o imaginário do artista e os elementos visuais destacados por ele para representá-lo. Sua produção dá forma a seu universo íntimo, subjetivo; cada bordado é como se estivesse bordando a própria passagem pela Terra, uma vez que as obras deste artista sempre falam "de seu próprio corpo" (Adriano Pedrosa, 1995). A opção homossexual e a contaminação pela Aids sugerem um trabalho transdisciplinar relacionando representação do corpo, saúde e sexualidade, considerando a forte ligação entre sua vida e sua obra.


Para quê?

Para que o aluno possa:
travar contato com a obra de Leonilson, criando referências sobre a arte brasileira dos anos 80 e início dos anos 90;
identificar em Leonilson a recorrência dos elementos ligados a seu pensamento e sua intimidade que estão presentes na obra, tendo em vista que ela é autobiográfica;
abordar os temas transversais que dizem respeito à sexualidade e à saúde a partir da densa relação da história de vida de Leonilson com sua obra;
refletir sobre as possibilidades de estabelecer relações entre a linguagem artística, as palavras e o corpo, e incorporá-las num exercício de criação.

 
Como? (Quando? Onde?)

O olhar silencioso

Inicialmente os alunos podem ser convidados a olhar silenciosamente a obra durante alguns minutos, tentando perceber cada detalhe das formas, das nuances de cores, da composição e do movimento. Tentar uma aproximação mais íntima através do olhar, sem a preocupação com qualquer significado aparente, mas com intuito de penetrar no texto visual.

O olhar curioso

Instigados pelo olhar curioso, os alunos serão estimulados a elaborar perguntas à obra, perguntas estas que possibilitarão ir além do quadro seguindo os índices presentes na obra. É um convite a mergulhar na obra em busca da compreensão de seu significado.
As perguntas podem ser realizadas como investigações de ordem formal ou como meios de discutir com a classe as diversas interpretações da obra.

 

1. Interpretações
"- Outros elementos recorrentes são números, ampulhetas, bússolas, relógios. Instrumentos de medição do tempo e do lugar.
- Sempre fui muito ruim em Matemática, mas tinha uma atração pelos números, por serem elementos gráficos. De vez em quando eles assumem uma verdade que pertence ao sujeito; por exemplo: minha idade, ou meu peso ou minha altura. Adoraria estudar Matemática. Quanto à ampulheta, ela traz uma noção de tempo que não acaba porque você sempre pode virá-la e começar de novo. Já a bússola foi um de meus brinquedos favoritos.
- A forma da ampulheta remete ao infinito. Você fez muitos trabalhos com o número oito associado ao infinito. O que mais constitui seu tesouro mítico?
- Os peixinhos. Às vezes um, outras vezes em pares. E a escada, tipo escada de pedreiro.
- A ampulheta ficou obsoleta. Você me lembra um alfaiate, aquele sujeito nostálgico cuja atividade foi varrida pela modernização.
- Mas isso não é a memória? A ampulheta conta o tempo que passa." (Entrevista de Leonilson para L. Lagnado.)

 

A sintaxe visual

As questões de ordem formal dizem respeito aos aspectos da composição, das cores, das linhas, da luz e do movimento, buscando compreender aspectos da sintaxe visual do artista.
Como estão distribuídos os
elementos nesta composição?
Como podemos perceber o movimento na imagem que é, em princípio, estático? E na obra de Leonilson, "Rios de palavras", como podemos identificar o movimento?
Quais as linhas que predominam: as sinuosas, as diagonais, as horizontais ou as verticais?
As linhas existentes dão idéia de algo que acontece na realidade concreta? Em que plano ocorre a cena?
Quais as cores predominantes? Será que essas cores possuem um significado?
Observe o suporte da pintura e a técnica utilizada. Por que Leonilson não utiliza os suportes tradicionais de pintura? Que outras técnicas e suportes o artista usou?
Compare esta obra com outras obras do artista e observe o tratamento dado às linhas, ao movimento e às cores.

 

2. Cores
Lisette Lagnado refere-se a sua produção como "uma arte solta e otimista, desprendida e generosa... Leonilson é um artista colorido: ali tem roxo, verde, amarelo, vermelho, rosa, laranja, tudo sem preconceito nem pudores. Evidentemente, diz que não tem cor predileta. Que no fundo tanto faz. Podia ser outra cor. Mas que fatalmente acaba ligando, feito criança, a cor a um sentimento. Por isso, economiza o vermelho e o violeta, considerados cores máximas em certas religiões. Leonilson conta que senta em sua mesa de trabalho e vai pegando as tintas de costas, ao acaso..."
Quando L. Lagnado comenta que, numa entrevista, ele disse que escolhia as cores a esmo, Leonilson responde: "Que exagero! Eu escolho, sim, só que é uma escolha mais existencial. Não fico tentando fazer combinações de cores. Vou até os tubos de tinta para pegar um vermelho e acabo pegando um verde. Fico pensando: 'Será que eu vou representar o fogo pelo vermelho?' Não gosto dessa história de representação, onde o fogo é vermelho, a água é azul, a grama é verde. Não tem importância, assim como a figura não é importante. Se estou com preguiça de bordar os pés, então não bordo. Isso não aumenta nem diminui o que seria o valor do trabalho".

 

3. "Rios de palavras"
"A cabeça parece desproporcional e raramente apresenta traços fisionômicos.
Sim, porque às vezes eu erro. Alguns trabalhos mostram cabeças dentro de outras, mais ou menos como quando você está pensando em alguém. Eu gosto desse tipo de imagem. Há também figuras de cabeça para baixo.
- Em 'Rios de palavras', há duas cabeças unidas por um rio que sai do ouvido e passa pela boca. A referência à palavra era tímida. Hoje você dá outro peso, os trabalhos podem ser constituídos exclusivamente da palavra. Há também a recorrência do rio com seus afluentes, que remete ao tronco da árvore com suas raízes, ou ainda às veias e artérias do corpo.
- É uma outra idéia de que eu gosto muito. Sempre gostei de ficar vendo mapas quando eu lia sobre o Oriente, para procurar os lugares. Raízes de árvores parecem caminhos de mapas ou um desenho de anatomia. Eu relaciono as três coisas. Em 'Todos os rios levam a sua boca', de uma boca vermelha no meio da tela saem vários rios da região Oeste de São Paulo, misturados com frases minhas. Às vezes acho que pode ser um exercício de memória, para ficar relembrando." (Entrevista de Leonilson para L. Lagnado.)

 

As interpretações

As perguntas de características interpretativas visam identificar aspectos cognitivos e emocionais presentes no texto visual. São aquelas que possibilitam realizar a articulação entre o que se conhece e o que a obra nos apresenta de forma simbólica. É o momento em que se estabelece o diálogo, a reflexão e o desvelamento dos significados da obra.
Atento aos assuntos abordados pelos alunos, o professor poderá acrescentar, aos poucos, novos conteúdos que contribuam para o aprofundamento da discussão, possibilitando ao aluno estabelecer relações com as informações que já possui, permitindo-lhe rever e aprofundar as impressões iniciais sobre a obra de Leonilson, que cria como se anotasse em um diário íntimo tudo o que vive.
Existe relação entre esta obra e a vida de Leonilson? Qual é a temática predominante na obra do artista?
O que leva um artista a definir sua própria vida como tema principal de uma trajetória artística? Você conhece outro artista de sua época com essa mesma característica? Já viu algum auto-retrato?
O que significam essas cabeças apoiadas uma na outra, em sentido contrário?
O que será que representa a forma que existe no ponto de união das cabeças? O símbolo de um átomo? Uma mandala branca com bolinhas?
Qual é o significado simbólico da mandala? E do átomo?
A posição das cabeças sugere o símbolo do infinito em diagonal. Será que o artista usou esse símbolo em outras obras? Ou essa forma poderia ser uma ampulheta?
O que é uma ampulheta? Que significado teria na obra de Leonilson?
Por que a obra foi chamada "Rios de palavras"?
Por que as cabeças estão envolvidas em faixas brancas pontilhadas? O que simbolizam essas faixas? São elas a metáfora do rio e das palavras que dão título à obra?
Que significado simbólico tem o rio? Para Leonilson, o que significa o rio? E para o aluno, que significado tem o rio?
Por que a forma do círculo espiralado? Existem outras obras do artista com essa forma?
Essas cores possuem um significado simbólico nesta obra?
Essas e muitas outras questões podem surgir durante o processo de mediação do professor, conforme o repertório referencial de cada aluno e o contexto histórico-cultural em que está inserido. Esses repertórios diferenciados são enriquecedores na discussão, pois colocam na roda visões de mundo diversas, permitindo que os alunos despertem para outras possibilidades de percepção. Cabe ao professor selecionar e adaptar as perguntas a seu contexto; por exemplo, as que envolvem comparações com outras obras de Leonilson são mais fáceis de serem realizadas a partir de uma visita a suas obras expostas na XXIV Bienal, ou caso o professor pesquise e colete outras imagens de obras do artista.

 

4. Diário íntimo
Segundo João Cândido Galvão, "quando as teorias da estação exigem obediência monástica aos gurus de plantão e a alguns colecionadores que, decididos a direcionar a produção artística das gerações mais jovens, pregam o rigor cerebral e a celebração da morte da arte, ele ousa optar pelo coração. Quando a moda é monumentalidade, ele se torna cada vez mais intimista, carregado de melancolia bem-humorada. Na contramão dos modismos, o artista prefere respirar o ar de seu tempo, uma preferência que lhe sai cara, pois coloca-se como outsider em seu país. Os trabalhos de Leonilson podem ser vistos como páginas de um diário íntimo de grande sedução. Para elaborar esse diário, ele lança mão de qualquer recurso disponível".
A obra de Leonilson é autobiográfica, intimista e melancólica. Segundo Sônia Salzstein Goldberg, ele joga "deliberadamente na ambigüidade entre o gesto e a representação (gesto estudado, mas ainda assim gesto, por sua proposital indeterminação)".
L. Lagnado pergunta: "Como você vê o fato de um indivíduo fazer o espectador participar de suas angústias, de seus desejos? A pintura se torna uma espécie de palco para exteriorizar sentimentos ou uma narração na primeira pessoa. A auto-referência não seria um aspecto restritivo à arte?" e Leonilson responde: "Não. Tunga é um artista que tira pedaços dele mesmo e põe no trabalho. Alguns preferem que o trabalho fique longe do artista, o que eu acho também muito legal; outros lidam com aspectos íntimos, e projetam seu interior para a obra".

Tunga (1952, Palmares, PE) Antonio Josë de Barros Carvalho e Mello Mourâo ë um artista brasileiro cuja obra geralmente ë apresentada na forma de objetos e instalaç§es. Vžrios destes objetos remetem Ç uma poëtica da intimidade do corpo, como os enormes pentes e tranças de cobre que apresentou em 1992.
 

5. Auto-retrato
L. Lagnado: "Vejo esse trabalho, com seus dados biográficos, como um auto-retrato tão paradigmático para nosso fim de século quanto deve ter sido a "Gioconda" para a Renascença. Hoje, o que sobra de nossa imagem é a evidência de uma ausência. Cada pessoa que levantar a cortina verá refletida uma imagem diferente. Você fez um auto-retrato a partir de uma observação sua, sem cristalizar a imagem. Por isso, não é apenas um retrato seu, mas de uma época. Com esse trabalho, cada um tem seu olhar devolvido".
Leonilson responde: "A intenção do espelho é exatamente essa. Eu falo do objeto do desejo, mas também fico pensando nas pessoas que vão levantar a cortina e se ver. Elas podem ficar chocadas, ou surpresas. O trabalho é muito simples, mas ele não entrega uma verdade. Pelo contrário, oferece várias opções. Às vezes, para você descobrir que você está vivo, diferente, ou com uma espinha, você olha no espelho e nota que está de um outro jeito, interiormente. Por que "Puerto"? (...) Para exercitar a curiosidade. (...) Nunca me olhei no espelho. Para não me ver. Acho que sempre me achei feio. Sempre fui muito tímido, muito tímido mesmo. Vou te dizer uma coisa: eu não levanto a cortininha. Dificilmente. Fico contente que o espelho seja coberto".

 

As relações entre a linguagem e o corpo

Propor uma pesquisa sobre a linguagem e a sua relação com o corpo, buscando a compreensão da linguagem como elemento que estrutura a relação do indivíduo com a realidade. Procurar entender simultaneamente a linguagem do ponto de vista da comunicação e da arte.
A referência ao processo de criação do logotipo da XXIV Bienal de São Paulo pode ser interessante pelo contraste com o processo de criação de Leonilson, que utiliza palavras e imagens como forma de concretizar uma simbologia pessoal, vinculada ao prazer de fazer. O designer também utiliza em seu trabalho palavras e imagens, que assumem simultaneamente um aspecto simbólico e um aspecto utilitário, produzindo uma marca de identificação do evento que pode ser estampada em correspondências, publicações, camisetas, cartazes, sacolas etc.
O "globo de cobre" que Leonilson utilizou em sua performance durante a XVIII Bienal Internacional de São Paulo, em 1985, inspirou a criação do logotipo da XXIV Bienal de São Paulo. Sua utilização, deslocada em relação ao centro do nome do evento, é explicada pelo curador, que justifica a colocação do globo sobre a palavra "São Paulo" como representação do "mundo pousando sobre São Paulo" durante a realização deste evento internacional.
Para encaminhar esta pesquisa a discussões sobre o corpo e sua representação que permitam aos alunos estabelecer relações entre este Percurso Educativo e sua vida pessoal, sugerimos propor um trabalho transdisciplinar que explicite os temas do homossexualismo e da Aids. A história de vida de Leonilson propicia ao professor a oportunidade de abordar os temas transversais propostos pelos "Parâmetros curriculares nacionais" no que diz respeito à saúde, à sexualidade e ao preconceito.
Os alunos poderão concluir esta proposta com a elaboração de um trabalho artístico, como forma de vivenciar poeticamente os conhecimentos construídos.
Sugerimos orientar os estudantes para que reúnam palavras e frases, coletadas ou inventadas por eles, que considerem significativas em relação aos temas discutidos. Depois disso, partindo do resultado dessa seleção, propor que realizem desenhos ou pinturas nos quais estudem as possibilidades de relação entre texto e imagem, integrando a temática da representação do corpo e das palavras na criação artística, de acordo com sua visão pessoal.
A discussão destes trabalhos com a classe durante sua exibição é uma excelente ocasião para verificar como os alunos incorporaram as experiências vividas neste percurso.

 

6. O prazer de fazer
Leonilson declara a Lisete Lagnado: "Ï preciso ir tentando e fazendo. Hoje, por exemplo, eu nâo ia conseguir cortar madeira, bater pregos, transportar pesos. Pela minha saöde (...) Ou eu faço mesmo, ou faço outra coisa. Por isso, agora faço objetos de pano. (...) eu gosto de fazer. Ï meu prazer. A obra ë conseguir fazer. A gente trabalha com o que tem. Se nâo ë possìvel fazer alguma coisa, tem que fazer outra. Ï preciso respeitar isso. Eu jž disse que a obra nâo ë tâo importante quanto o aprendizado. Ï muito importante ir aprendendo com o que se faz. (...) Acho que um marceneiro nunca aceitaria fazer esse trabalho. Como tem idëias mais rìgidas que as minhas, ele modificaria o projeto para a peça ficar certinha e nâo ficar bamba. Mas eu quero que a coisa fique bamba. Uma das caracterìsticas dos meus trabalhos ë a ambigÆidade. A gente falou de sexualidade na semana passada. Eu dizia que meus trabalhos eram meio gays assim, mas nâo ë isso. Acho que eles sâo ambìguos mesmo. Por exemplo, eu trabalho com a delicadeza, uma costura, um bordado. Leda trabalha com aqueles colch§es, aqueles monstros. Isto ë uma ambigÆidade em relaçâo a ela como mulher. Assim como os bordados revelam minha ambigÆidade na minha relaçâo a ela como homem".

Leda: Leda Catunda, artista contemporénea a Leonilson, participou com ele da exposiçâo "Como vai vocè, geraçâo 80", realizada no Parque Lage no Rio de Janeiro, em 1984. Leonilson comenta seu trabalho: "Vejo o trabalho dela, e cresço, porque ela sempre pensa o contržrio. Ï uma terrorista, no bom sentido, ë uma figura catalisadora, digna desse final de sëculo".
 

7. Homossexualismo
"- Por que você disse que um encontro gay provoca o público? Que tipo de reação você queria provocar?
- Acho que mostrar que gay também ama. É uma forma boba de dizer isso mas, tirando Oscar Wilde, a gente nunca vê a literatura gay. Aqui no Brasil não existe uma revista. É uma questão muito elitista, muito privada. E eu pensei que seria legal mostrar no Centro Cultural, por ser um lugar visitado por estudantes. Mas não que eu seja um defensor que sai com uma bandeira...
- Me parece uma provocação muito maior dentro no meio das artes plásticas, no qual não existe...
- Sinceridade. Não existe sinceridade nenhuma. O problema é que as pessoas são mascaradas mesmo. Esse negócio de gay, de lésbica, é temido como se teme o diabo. Por sua formação católica. (...) Os pais têm mais medo que o filho seja gay do que ele seja bandido. Gay, para a sociedade na qual a gente vive, é o último degrau." (Entrevista de Leonilson para L. Lagnado.)

Oscar Wilde (1854-1900) Poeta e dramaturgo irlandes. Foi acusado de sodomia, julgado e condenado Ç prisâo de 1895 a 1897 na Inglaterra.
 

8. Do corpo e das palavras
"Um trabalho com palavras abre o leque para centenas de interpretações. Não penso em nada disso quando estou preparando ou trabalhando. (...) Nos desenhos de 1989, a palavra entrou realmente nos trabalhos. Eu estava muito apaixonado. Ficava sozinho, sem saber direito o que fazer. Então pensei em escrever nos desenhos em vez de ficar escrevendo em cadernos.
- A realidade da palavra é totalmente autobiográfica?
- É. (...) O nome é a parte mais íntima que eu posso revelar. Pego uma frase de uma música, fico com ela ou modifico-a, anoto palavras, tenho livrinhos de palavras. Agora, tenho escrito diretamente nos trabalhos."
(...) - Em vários momentos, você usa o corpo como suporte da obra, seja através da metáfora da camisa que guarda sua presença registrada nas inscrições biográficas, seja no uso do espelho que mantém a memória. Por isso eu diria que seu corpo está permeando todos esses trabalhos. O corpo é a obra. Merleau-Ponty diz: "Eu não estou à frente de meu corpo, eu não estou dentro de meu corpo. A verdade é que eu sou meu corpo".
- A única coisa que afirma que sou eu neste trabalho são meus dados aqui bordados. De resto, qualquer um que levantar a cortina pode achar que está se vendo nesse trabalho, e que ele é seu..." (Entrevista de Leonilson para L. Lagnado.)

 

Registros

Para o fechamento da atividade, também é possível propor o registro por escrito dos conhecimentos construídos durante a visita à Bienal (ou na visualização da reprodução da obra), na discussão e nos procedimentos de pesquisa e de criação propostos.
A avaliação do percurso desenvolvido é de grande importância, tanto para o professor quanto para o aluno, pois possibilita: dimensionar os resultados atingidos e as possibilidades de aprofundamento; retomar questões que ficaram em aberto; oportunizar a reflexão do aluno sobre todo o processo e percepção das mudanças internas nele desencadeadas.

Sugestões de continuidade

A história de vida de Leonilson fornece diversos elementos para compreensão de sua produção, Lisette Lagnado destaca como pistas: "a cultura nordestina (com a literatura de cordel, o artesanato, as cores vivas, as crenças populares) e a iconografia religiosa, ancorada nos valores morais". O artista utilizou diversas técnicas durante sua carreira, indo da performance e da pintura ao bordado.
Como desdobramento da atividade, propor uma pesquisa mais aprofundada sobre a trajetória singular de Leonilson, conhecendo obras de diferentes fases que possibilitem entender seu percurso artístico e a relação deste com aspectos da vida pessoal do artista.
Procure analisar as três fases de sua trajetória: período de 1983 a 1988, que se caracteriza pelo prazer da pintura; de 1989 a 1991, quando surge o tema do abandono e a inclinação para os valores românticos; e, nos dois últimos anos de sua vida, em que surge a alegoria da doença (Lagnado, 1995). Observando as características da linguagem nas fases citadas, comparar com a obra estudada.
Considerando todos estes aspectos, a obra "El Puerto", de 1992 (uma reprodução monocromática foi incluída no verso da imagem de apoio), pode criar um contraste interessante com "Rios de palavras", de 1987.
Realizar uma investigação sobre a linguagem de outros artistas da Geração 80 (grupo que expôs no Parque Lage no Rio de Janeiro), e comparar com a linguagem de Leonilson, procurando aproximações e distanciamentos quanto aos temas e aos aspectos formais da obra.
Procure estabelecer relações com outros artistas brasileiros contemporâneos, buscando perceber como Leonilson se distanciou das influências externas. Num momento em que havia uma forte corrente no mundo das artes à identificação com tendências internacionais, ele buscou aprofundar seu trabalho numa direção intimista, valorizando o registro de sua "experiência individual".

 

9. Da pintura ao bordado
Em 1985, Frederico de Morais escreveu que "cada vez mais pintor, Leonilson começa a criar estruturas complexas, superpondo tempos e espaços, diversificando seu vocabulário temático, manipulando técnicas pouco ortodoxas. Usa rolos e pincéis, faz uso de impressões, cria sutis efeitos de matéria e textura. Persiste um ar deliberadamente displicente, com o aproveitamento do branco do tecido e até de suas dobras. O colorido também mudou; ele estimula os contrastes, jogando amarelos e vermelhos vibrantes contra uns tons pardacentos, ocres, terras, tonalidades surdas, ou fica só nestas cores sujas, como se a tela fosse uma lona de caminhão, guardando as marcas da estrada e do tempo".
Já em 1991, Casimiro Xavier de Mendonça escreve: "Leonilson vem organizando uma espécie de cartilha secreta, um livro de iniciação, em que cada trabalho acrescenta um elemento novo ao perfil do próprio artista. Das telas gigantes e recortadas em formas irregulares, ele passou para os pequenos objetos que lembram relicários e peças religiosas. Pérolas, redes, veludos e lonas - os fragmentos de tecidos dados pelos amigos -, tudo isto se transforma numa iconografia inconfundível".

Iconografia: nesse contexto, o termo se refere Ç criaçâo de uma linguagem pr�pria por meio de um repert�rio de imagens recorrentes na criaçâo da obra do artista.
 

10. "El puerto"
"Ele chama 'El puerto'. Eu fiz teste de HIV e deu positivo hž um ano. E eu nâo senti nada. Vocè imagina? Eu jž vi vžrios amigos em desespero, e eu nâo. Eu nâo senti abso-lu-tamente nada. Falei: 'Mais um fato em minha vida'. Depois do teste, jž fiquei desesperado, ainda fico deprimido. Mas o que eu sei ë que minha qualidade de vida tem de ser a melhor possìvel. Isso implica saber que, de manhâ, eu tenho de me levantar e tomar doze comprimidos, cinco vitaminas, mais, mais, mais. A cada très meses, eu tenho de fazer aplicaç§es de um remëdio japonès e outro americano que custam uma fortuna. Antigamente, eu passava meus limites. Hoje, se estou cansado, nem me levanto da cama. Tambëm penso que me tornei muito mais receptivo. Nâo sei se eu tenho mais seis meses, dois anos ou vinte. Entâo, nâo por d� nem piedade, minha relaçâo com as pessoas melhorou muito. Comecei a fazer ioga. A sala de ioga tem espelhos e cortinas listradas. Nunca gostei muito de me olhar no espelho. Nem tinha espelho em meu quarto, evitava o espelho do banheiro. Para que se olhar no espelho? Nâo hž nenhuma necessidade. Eu estava no centro da cidade e comprei este espelhinho. Quando cheguei em casa, pintei de laranja bem forte. Comprei um pano listrado... Usei a palavra 'porto' por causa da receptividade. O porto recebe. O Leo com 35 anos, 60 quilos e 1,79 metros ë um porto que fica recebendo. Acho que eu recebo muito mais do que eu dou, porque preciso canalizar minhas energias para minha intimidade. Ï isso, simplesmente. Precisava fazer um objeto com essas caracterìsticas para mim. Ï um trabalho parecido com o salâo enorme de ioga porque eu queria fazer um objeto de desejo. Aližs, todos os trabalhos sâo objetos de desejo." (Entrevista de Leonilson para L. Lagnado.)


Glossžrio

Beuys (Joseph Beuys, Krefeld, Alemanha, 1921 - Düsseldorf, Alemanha, 1986): artista e professor alemão. Em 1943, sobreviveu à queda de seu avião nas estepes russas graças aos cuidados do povo local, que o aqueceu com gordura animal, o mesmo material que usaria, em várias de suas esculturas, por sua forte conexão humana.

Espelho: Lisette Lagnado comenta: "Quando vi esse trabalho com espelho, pensei imediatamente na imagem que devolvia, que você não pode nem apalpar, nem imobilizar. Toda vez que você consulta o espelho, sua imagem...", e Leonilson completa: "É. Já mudou".

Mandala: em sânscrito, significa "círculo". Num sentido mais amplo, é um auxílio para a meditação e a concentração; no sentido mais restrito, corresponde a modelos espirituais da ordenação do mundo (cosmogramas), combinando elementos de maneiras diversas.

Rio: simbolicamente, o rio é aquela água que não é estática, mas que por seu fluxo e suas inundações influencia a dinâmica e a divisão do tempo.

  Bibliografia

BIEDERMANN, Hans. "Dicionário ilustrado de símbolos". São Paulo: Melhoramentos, 1993.
GALVÃO, João Cândido. Leonilson na São Paulo. "Guia das artes" n. 27, ano 6, São Paulo, nov./dez. 1991. (p. 49)
GENETTE, Gérard. "Esthétique et poétique". Paris: Seuil, 1992.
GOLDBERG, Sônia Salzstein. As palavras e as coisas: Leonilson expõe novas pinturas e objetos em mostras simultâneas em São Paulo, Brasília e Belo Horizonte. "Guia das Artes", n. 14, ano 3, São Paulo, 1989.
GUINLE, Jorge. Leonilson: a implosão da Imagem. "Módulo" n. 75, Rio de Janeiro, mar. 1993.
KLINTOWITZ, Jacob. Leonilson, uma nova estrela na arte brasileira. "Jornal da Tarde". São Paulo, 1o abr. 1985.
LAGNADO, Lisette. Leonilson, símbolos coloridos. "Galeria" n. 8, São Paulo, 1988.
__________. "Leonilson são tantas as verdades". São Paulo: SESI, 21 nov. 1995 a 28 jan. 1996.
"Leonilson". São Paulo: Galeria de Arte São Paulo, 1991. (Catálogo de exposição com texto de Casimiro Xavier de Mendonça.)
"Leonilson". São Paulo: Galeria de Arte São Paulo, 1993. (Catálogo de exposição com texto de João Candido Galvão.)
MORAIS, Frederico de. Leonilson: não, preciso agitar antes de usar. "O Globo". Rio de Janeiro, 3 jun. de 1983.
__________. Apresentação. In: "Coleção Gilberto Chateaubriand: retrato e auto-retrato da arte brasileira". São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1984. (Catálogo de exposição.)
__________. Leonilson: a geração 80 ficou para trás. "Módulo" n. 84, Rio de Janeiro, mar. 1985.
PONTUAL, Roberto. "Explode geração!". Rio de Janeiro: Avenir, 1985.
__________. "Entre dois séculos: arte brasileira do século XX na coleção Gilberto Chateaubriand". Rio de Janeiro: JB, 1987.