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Como? (Quando?
Onde?)
1. Aç§es
antropofžgicas da cor1 - de Van Gogh a Cildo Meireles
Essa proposta foi inspirada pela sala dos monocromos criada pela curadoria
desta XXIV Bienal, que reöne obras de Piero Manzoni, Robert Ryman, Hëlio
Oiticica, Lucio Fontana, Kusama e Yves Klein. Incluìmos duas outras
obras, de fora da sala, como referència para a compreensâo dessa trajet�ria
sobre o uso da cor na arte: uma pintura de Van Gogh e uma instalaçâo
de Cildo Meireles. O percurso construìdo aqui tem como fio condutor
as aç§es antropofžgicas da cor, examinadas como expressâo da relaçâo
entre artista, arte e mundo. Interessa estudar as transformaç§es das
aç§es artìsticas criadoras de situaç§es poëticas pelo uso da cor, procurando
apontar seus possìveis vìnculos com a emergència da mentalidade de uma
ëpoca ou cultura como parte de um processo recìproco de inserçâo entre
arte e sociedade. Por que esses artistas, em ëpocas e contextos culturais
tâo diferentes, criam aç§es expressivas de seus mundos em monocromia?
Como podem ser desveladas dentro dos sistemas expressivos das obras
essas forças sociais, culturais e polìticas? O professor pode instigar
o olhar a perceber as interseç§es e as diferenças entre as obras, lembrando
que constroem mundos monocromžticos ou desvios do mundo. Esse debate
deve ser compartilhado de tal forma que a leitura da obra de arte2
se torne objeto da curiosidade dos alunos.
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1.
Ações antropofágicas da cor
Elas podem ser de duas naturezas:
Positiva: a antropofagia da cor ocorre por sua potencialização
como entidade expressiva, via transbordamento e contaminação.
O monocromo, nesse caso, é resultado da saturação
purista de uma única cor, materialização desta
como entidade, formadora em si de um campo expressivo. Nesse caso,
estão as obras: "O desvio para o vermelho" e "O
gesto azul" de Cildo Meireles, "Anthropophagies",
de Yves Klein, e ainda os "Bólides" e "Parangolés",
de Hélio Oiticica. As pinturas de Reverón afirmam
uma positividade do branco, representativo do primado da luz solar
dos trópicos sobre os sentidos e a apreensão do mundo.
Negativa: o purismo monocromático, tendo como origem
a repulsão da ação expressiva da cor, exerce
um reducionismo radical. A negação da cor é,
então, manifestada pelos monocromos brancos ou pretos. Seguindo
essa linha de uso dos monocromos, temos os "Acromos",
de Piero Manzoni, e as pinturas de Robert Ryman.
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2.
Leitura da obra de arte
A proposta antropofagias contìnuas e densidade adota o conceito
de leitura da obra de arte ligado a uma atitude de revelaçâo contìnua
de sentidos e simbolizado pelos conceitos de antropofagias contìnuas
e densidade: interagir (sabor) para aprofundar (saber); aprofundar
para transformar; e transformar para se transformar criando. Invocando
a exploraçâo das fronteiras e interseç§es entre a experiència dos
sentidos e o aprendizado de valores culturais e hist�ricos atribuìdos
Ç cor, debater e avaliar os nìveis de aprendizagem da experiència
estëtica segundo suas dimens§es cognitiva (saber) e afetiva (sabor).
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2.
Oficinas: ações antropofágicas da cor
Ao iniciar cada oficina, os alunos poderão, observando as obras ou
suas reproduções, com o auxílio do professor, realizar
um exercício de percepção imaginativa, compartilhando
impressões e reconhecendo as diferenças e semelhanças
entre suas leituras individuais.
A partir dessas leituras, cabe ao professor promover o entendimento dos
diversos processos criativos dos artistas escolhidos, explorando, na leitura
da obra, o encontro entre cor, corpo e mundo. As oficinas procuram instigar
os estudantes a assumir o papel de criadores de situações
poéticas pela cor e a construir ambientes provocadores da ativação
dos sentidos.
2.1. Oficina desvio para o amarelo: Van Gogh (1853-1890), "O banco
de pedra no jardim do asilo" (1889)
Após a
experiência inicial de observação e discussão
dos alunos, retomar o jogo da percepção propondo para eles
um exercício de imaginação produtiva. O professor pode
pedir que descrevam esta pequena imagem apontando detalhes que Van Gogh
incluiu em sua composição e o que não entrou. Chamar
a atenção dos alunos para as partes da árvore e do
céu que estão cortadas para fora da moldura. Estimular a visualização
da situação na qual o artista se posicionou diante daquele
banco e da árvore.
Vários "desvios"
ou várias possibilidades abrem-se à discussão: onde
estão as pessoas nesta imagem? Onde está o espectador? Esta
imagem do banco feita no século XIX adapta-se ao mundo de hoje? O
que sentimos diante da imagem de um banco vazio?
Que qualidades da
pintura demonstram, independentemente da cor, uma marca (conjunto de gestos
- pinceladas) transbordante do engajamento interior de Van Gogh com a paisagem
exterior?
Comentar esta construção gestual da pintura de Van
Gogh3 pela pincelada ordenada em relação a
outras pinturas de paisagem que os alunos conheçam. Por exemplo:
que diferença ela tem das pinturas impressionistas?
Esta obra de Van Gogh
caracteriza-se por um transbordamento da cor em relação às
cores da natureza. Especial atenção deve ser dada aos ritmos
das pinceladas, às direções e estruturas resultantes.
São justamente nesses atributos de sua pintura que se assentam os
primeiros movimentos de superação da percepção
impressionista do mundo e abertura de horizontes para um conceito de "arte-ação",
que foi tomado pela próxima geração de artistas como
raiz do Expressionismo, desdobrando-se em vários movimentos artísticos
no decorrer do século XX, como o Expressionismo alemão, o
grupo Cobra e o Expressionismo abstrato4. Nesta "arte-ação"
de Van Gogh com a cor - construindo mundos -, encerra-se um patamar da História
da Arte.
Como desdobramento,
o professor pode inclusive propor que seus alunos desenhem diferentes bancos
de praça de suas vizinhanças, com o mesmo tamanho de folha.
Todos os espaços da folha devem estar preenchidos por linhas, traços
e texturas gráficas. O "desvio para o amarelo" será
representado pela utilização de escala monocromática
de amarelo, laranja e ocre, com toques preto-e-branco, cores predominantes
da obra de Van Gogh. Ainda como sugestão de materiais, pode-se lançar
mão de folhas de lixa fina - tamanho padrão - e lápis
de cera.
Esse exercício
já é em si uma ação antropofágica: a
intenção é promover uma vivência de todas as
dificuldades do pintor em selecionar e construir uma imagem, passar para
a tela (o papel), por meio do desenho, um objeto do mundo ("glocalização")
- o banco. Comparar e compartilhar as (sub) versões individuais.
Cada banco tem uma história para contar!
Debate: o artista
constrói mundos? Em que sentido cada obra de arte é uma ação
antropofágica do mundo e ao mesmo tempo um mundo em si? Em outras
palavras, cada obra de arte é um mundo em si e, ao mesmo tempo, um
desvio do mundo real?sciència
ëtica. |
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3.
Van Gogh
Com Van Gogh (1853-1890), pode-se apontar o desvio entre santidade
e comunhão e loucura e isolamento que encarna todo o drama
de um ser sensível e criador perante uma sociedade industrial
e pragmática. Van Gogh, em sua trajetória, tenta se
comunicar com - ser parte de - a humanidade; não adaptado
à condição de missionário/pastor, rejeitado,
busca encontrar o mundo e a vida pela arte. A história do
drama de Van Gogh já foi muito explorada em filmes e livros.
Mas o que está em jogo aqui é sua "re-ação"
antropofágica ao mundo pela arte - principalmente pela pintura
cor/ação.
Uma pintura carregada de pinceladas, estruturadas ritmicamente em
fluxos, os planos, os espaços e as coisas dentro dessa moldura.
Ali, sobre a tela, Van Gogh deixa marcado um lugar, não mais
uma tela, um lugar vital exteriorizado da mais profunda essência
espiritual do artista. Nesse asilo, uma imagem do mundo desencarnou/emigrou,
desviou-se do mundo para a tela do artista - o mundo simbólico
da arte.
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4.
Expressionismo abstrato
O Expressionismo abstrato (cerca de 1940 a 1960) tem sua origem
em dois movimentos paralelos do inìcio do sëculo: o Fauvismo
e os expressionistas alemâes do grupo Die Brucke (a ponte). Por
tržs de sua expressâo gestual, inscreve-se uma busca de revelaçâo
e registro dos mais profundos nìveis da consciència humana. Van
Gogh representa um elemento referencial deixando em suas pinturas
o legado expressivo do "ritmo profundo da existència traduzido em
gesto".
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Fauvismo:
os fauves (feras) "conceberam a arte como um impulso vital potencializando
a construtividade intrínseca da cor. A função
plástica, construtiva, da cor como elemento estrutural da visão,
construtora material da imagem". |
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2.2.
Oficina desvio para o vermelho: Cildo Meireles (Rio de Janeiro, 1948), instalação
"Desvio para o vermelho"
Cildo construiu e
expôs esta instalação no MAM do Rio de Janeiro, em 1984,
e no MAC da USP, em 1986. Agora, quatorze anos mais tarde, ela está
sendo reapresentada nesta Bienal. Que novos sentidos ela assume? Que outros
sentidos ligados ao contexto de seu momento histórico-cultural original
ficam menos evidentes? Com essas questões, Lisette Lagnado inicia
seu texto, inserido no catálogo da XXIV Bienal, referente à
reapresentação deste trabalho.
Esta obra tem dupla
potência de ação comunicativa. Sem dúvida ela
representa uma ação estética e crítica, isto
é, constitui um campo magnético de contaminação
e transbordamento dos sentidos pelo vermelho. A leitura desta obra ocorre
pela interação, pela imersão corpórea. Por outro
lado, ela é portadora de um rico sistema de metáforas, referente
à realidade política e cultural brasileira durante a ditadura
militar. Que sentido metafórico poderia ter a expressão "infiltração
do vermelho no mundo" para um militar dos anos 70?
O que significa o
fato de as coisas não serem arte em si, mas funcionarem como arte
a partir de uma ação estetizante do artista? Essa ação
poderia ser discutida com os alunos partindo-se da idéia de deslocar
coisas do mundo (do dia-a-dia) para o mundo institucional da arte, como
o museu ou a Bienal, para que funcionem como arte. Isto é, as coisas
passam a contar histórias de uma época, a ser elementos simbólicos
dentro de um conjunto de coisas (sistema de coisas intencionalmente comunicantes).
Essa questão pode motivar um debate na turma que remonta às
apropriações de Duchamp e do Neo-realismo: o que significa
um mero objeto funcionar como arte?
Vale chamar a atenção para a simultaneidade de mensagens e
leituras da situação ou do ambiente comunicativo concebido
por Cildo Meireles: ao mesmo tempo em que o espectador/visitante da obra
é absorvido por uma experiência de interação
sensível, corpo a corpo com o ambiente, é desafiado a decodificar
os enigmas e as pistas deixados por um artista tomado por um "desejo
revolucionário" (Lisette Lagnado). O que significa entrar num
desvio para o vermelho5?
Sugestão de
atividade para ativação dos sentidos: hiper-sensibilização
ao vermelho, com a formação de ambientes constituídos
de uma coletânea de objetos dessa cor.
Produzir filtros de papel celofane ou acetatos de diferentes cores para
olhar o mundo e as coisas. Fazer experimentos ao ar livre.
Realizar
uma oficina de apropriação, coleta, classificação
e bricolage. Convocar toda a turma para coletar diferentes objetos velhos
cuja cor original (de fábrica) seja vermelha. Procurar um espaço
no qual seja possível cobrir o chão com um borrachado vermelho,
construindo uma sala laboratório - "Desvio para o vermelho"
- em forma de "U". Essa coletânea pode ser lançada
em forma de gincana. Cada
objeto traz uma história.
Comunicar
aos alunos que o próprio Cildo Meireles anunciou no jornal, como
fez em 1984, sua lista de objetos vermelhos, oferecendo, em troca, seus
próprios trabalhos de arte. Aqui vão alguns dos objetos da
lista de Cildo: seis vasos compridos para flores vermelhos; um vaso baixo
redondo vermelho; 25 livros de capa
vermelha; um chapéu vermelho; um telefone vermelho; uma máquina
de escrever vermelha; um porta-lápis vermelho, lápis e canetas
vermelhos; um abajur de mesa (tipo escritório) vermelho; um xale
vermelho; um guarda-chuva vermelho; duas peças de roupa vermelha...
A turma pode continuar sua lista. Todos os objetos podem ser de diferentes
tonalidades de vermelho.
Faça uma avaliação
dessa experiência com os alunos. Como ela foi vista e entendida? |
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5.
O desvio para o vermelho
Ao primeiro olhar, a obra de arte provoca um estranhamento, pela
contaminaçâo e pelo transbordamento do vermelho. Cildo cria um ambiente
interior, em forma de "U", composto apenas de materiais e objetos,
mobìlias e atë obras de arte (pinturas) de outros artistas, todos
na cor vermelha. Dessa forma, o artista obriga o espectador a entrar
dentro da obra, e mais ainda, a ser envolvido pela obra-ambiente.
Com isso, diferencia-se da experiència de leitura de uma pintura
tradicional? Esta obra-ambiente demanda o deslocamento fìsico do
espectador. Nessa situaçâo de antropofagias recìprocas, o visitante
torna-se mais um objeto dentro da obra, campo de absorçâo do espectador
por inteiro, o que ë uma situaçâo ainda recente para a arte. O vermelho
passa a ser uma entidade de influència sobre esse visitante, o que
nâo deixa de ser uma açâo antropofžgica em uma nova dimensâo, agora,
da obra de arte sobre seu leitor. Cildo Meireles faz parte de uma
geraçâo de artistas que assume no Brasil o legado de Duchamp (1887-1968),
pai da arte conceitual e do Neo-realismo. Seu ato criador concentra-se
na concepçâo da situaçâo - estëtica/crìtica. Via apropriaçâo
e deslocamento para o museu, ele potencializa as coisas do mundo
para funcionarem como arte.
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Apropriação
e deslocamento:
essas ações antropofágicas ocorrem em relação
a nossa própria cultura material quando artistas se apropriam
de "objetos do dia-a-dia, produzidos para atender necessidades
individuais ou coletivas", e os deslocam desse contexto original
para as galerias ou para os museus, onde passam a "funcionar"
como objetos artísticos. |
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6.
Manzoni
Piero Manzoni realiza seu primeiro "Achromo" em 1956. Ainda que
sempre ligado a tela, seus brancos - acromos - sâo obtidos pela
aplicaçâo de diferentes materiais/objetos sobre o suporte: algodâo,
fibra de vidro. O artista produz efeitos de ritmo com movimentos
esponténeos ou constr�i sobre a tela estruturas, como uma sërie
de rolos brancos de algodâo obtendo um resultado de extrema limpeza
e ordem. Seus trabalhos estâo ligados ao Neo-realismo, resultam
da apropriaçâo de objetos e da interferència com eles na tela, onde
nâo assumem nenhuma conotaçâo narrativa ou simb�lica. De acordo
com Pierre Restany, o "Novo Realismo" movimento surgido na França
nos anos 60, pode ser vinculado diretamente aos princìpios de açâo
artìstica lançados pelo Dadaìsmo: as apropriaç§es, "readymades"
e "assemblages" a partir dos objetos produzidos pelo mundo industrial
buscam uma conciliaçâo do mundo da arte com o mundo industrial.
"A apropriaçâo do mundo real ë a chave do maravilhoso contemporéneo."
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Dadaísmo:
em 1913, pela primeira vez Francis Picabia (1878-1953) lança a idëia
de arte "amorfa" - que nâo ë mais nada alëm de gesto, sem possibilidade
de ser consumida como bem material para investimento no mercado das
artes internacionais. O Dadaìsmo como movimento artìstico tem em sua
base um paradoxo: o de ser a pr�pria anti-arte. |
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