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Eckhout e o canibalismo,
Tarsila e a Antropofagia

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Albert Eckhout
Groningen, Holanda, c. 1612 - c. 1665




"Índia Tapuia" ou "Índia Tarairiu"
1641 - tinta a óleo sobre a tela
267 x 160 cm
Coleção Nationalmuseet,
Dinamarca

O quê?

Linguagem acadêmica x linguagem moderna;
As metáforas do canibalismo em Eckhout e da antropofagia no Modernismo brasileiro;
o uso dos elementos formais e expressivos para trabalhar a figura humana na linguagem acadêmica e na linguagem moderna.


Por quê?

A expressão artística é uma construção situada em determinado contexto social e histórico.
A compreensão da arte é um processo que se inicia na infância e vai se estruturando à medida que o sujeito incorpora novas experiências estéticas e de mundo.
As experiências que provêm do diálogo com as obras de arte podem ser ampliadas pelo ensino de arte.
Discutir os conceitos de canibalismo e antropofagia nas obras de Eckhout e Tarsila do Amaral permite perceber alguns aspectos da proposta de articulação do conjunto de obras selecionadas pelos curadores para esta XXIV Bienal.


Para quê?

Para permitir ao aluno:
captar os signos presentes na obra de Eckhout;
estabelecer comparações entre a arte do século XVII e o Modernismo;
perceber e comparar as características da "Índia Tarairiu", de Eckhout, e do "Abaporu", de Tarsila do Amaral, desenvolvendo sua capacidade de apreciação estética;
compreender e incorporar elementos da linguagem plástica usados por Eckhout e Tarsila em sua atividade de criação;
introduzir a importância da discussão do conceito de antropofagia e canibalismo na XXIV Bienal1.

 

1. Antropofagia e canibalismo na XXIV Bienal
O conceito de antropofagia foi proposto pela curadoria porque, "alëm de sua dimensâo hist�rica, como momento de busca por emancipaçâo e atualizaçâo da arte moderna brasileira, assume um papel de metžfora nos processos de construçâo de identidades subjetivas culturais". A obra de arte apresenta nìveis de relaç§es antropofžgicas que atuam no artista, no contexto cultural, hist�rico e artìstico, na diversidade de leituras que se prop§e a devorar e na possibilidade de transformaçâo do espectador pela experiència com a obra de arte. O canibalismo ë metžfora e, "como pržtica simb�lica, compreende que somos formados a partir do outro, algo que estž na base da antropofagia como conceito dinémico incidente em diversos campos da cultura, ontem e hoje. A antropofagia ë exercìcio de identidade". Subentende-se a necessidade de nos alimentarmos de outras culturas para nossa transformaçâo cultural. No campo das idëias, antropofagia e canibalismo sâo metžforas que aludem Çs origens, instigam retorno, ida para dentro, tendo por motivo o encontro e confronto de diferentes perspectivas culturais.

Metáfora: relaçâo de semelhança subentendida entre o sentido pr�prio e o figurado.
Leituras: uma leitura crìtica se processa pelo reconhecimento da relaçâo da obra com a ëpoca de seu aparecimento e pela compreensâo da capacidade da obra de subverter a percepçâo usual, retomando o horizonte do leitor para depois contrariž-lo, gerando estranhamento ou reforçando as impress§es que se tem do mundo.
 
Como? (Quando? Onde?)

Tomando contato com as obras

O processo de apreciação artística inicia-se quando a obra desperta no espectador indagações e associações que levam os indivíduos a querer saber mais sobre ela e ampliar seu horizonte de experiência. O professor é responsável por provocar esse processo, estimulando sua capacidade de apreciação do aluno, por exemplo, por meio de questionamentos que conduzam a uma leitura crítica.


"Índia Tarairiu"

Diante da obra "Índia Tarairiu", de Eckhout, o professor, após situar o artista em relação ao universo retratado, pode orientar o percurso educativo do aprendiz com as seguintes interrogações:
O que se vê nesse quadro?
Quem é a figura central da obra? Como ela está representada?
Em que espaço essa figura está inserida? Como ele está
representado?
Considerando a tendência à idealização do índio2 pelo europeu (o que, de resto, é revelado na literatura romântica, como é o caso de "O Guarani" ou "Iracema", de José de Alencar), o que se pode concluir a respeito de a "Índia Tarairiu"?
Essa conclusão se reforça à consideração de outras obras de Eckhout? (Remeter os alunos à observação das demais figuras humanas e das naturezas-mortas.)
Este percurso tem como finalidade levar o estudante a perceber que Eckhout introduz novos parâmetros de visualidade do contexto brasileiro. "Não se trata mais da imagem difusa, configurada pela atividade da imaginação, nem da adivinhação dos sinais da escrita divina na natureza" (Ana Maria Belluzzo). Diferentemente da tradição portuguesa, os artistas holandeses estabelecem com a natureza uma relação regida por regras de observação puramente física ou científica. O professor deve propor questões (e eventualmente valer-se de comparações com os personagens míticos da literatura de José de Alencar, como Peri e Iracema) que favoreçam o aluno a formular essa "descoberta", o que aumenta sua familiaridade com as obras.

 

2. Idealização do Índio
Segundo Paulo Herkenhoff, "desde 1492, o ìndio foi desenhado pelo Ocidente como uma alteridade, ora monstruosa, ora edènica. Na cultura brasileira do sëculo XX, o ìndio serž construìdo, distante do falseamento do Romantismo do sëculo XIX, numa dimensâo, nâo do outro, mas de um si mesmo brasileiro, para uma sociedade cultural, na superaçâo de seu passado colonial. Se, na pintura brasileira do sëculo XIX, o ìndio idealizado (pelos pintores Victor Meireles, Rodolfo Amoedo e outros) perdia suas caracterìsticas ëtnicas, em nosso sëculo a cultura buscaria superar essas posiç§es etnocèntricas anteriores. Um gravador expressionista, Oswaldo Goeldi, (...) evitando uma relaçâo com a tendència polemicamente denominada 'primitivismo', que marcou o Modernismo na Europa, (...) evitou esse primitivismo: por nâo se considerar um selvagem, entendia que nâo seria genuìno (...) justamente por compreender que o ìndio ë dotado de uma cultura pr�pria (...) caberia lembrar. (...) A obra de Cildo Meireles adotarž um espìrito combativo de dar voz ao gueto e revelar a poëtica da visâo cosmog–nica dos ìndios. (...) A fotografia de Claudia Andujar (...) inscreve-se nessa tradiçâo mais combativa da cultura brasileira".

 
"Abaporu"

Concluída a primeira leitura, o professor deve propor um percurso semelhante com a obra "Abaporu"3, de Tarsila do Amaral.
O que se vê nesse quadro?
Quem é a figura central da obra? Como ela está representada?
Em que espaço essa figura está inserida? Como ele é representado?
Considerando a leitura modernista que se faz do índio brasileiro (o que também se pode verificar na literatura, por exemplo, em "Cobra Norato", de Raul Bopp), o que se pode concluir a respeito de "Abaporu"?
Essa conclusão se reforça à consideração das outras obras de Tarsila? (Ampliar a experiência do aluno por meio da leitura de "Antropofagia", de 1929, e "A negra", de 1923.)
A leitura desta obra modernista visa conduzir o estudante à percepção de um olhar diferenciado abordando o mesmo tema que atraiu os pintores de Nassau4, de formação acadêmica. Tarsila reportando agora a um novo modo de compreensão da figura do outro, o que coincide com uma opção radical pela identidade brasileira.
 

3. "Abaporu"
"Como ë que eu fiz isso?" Pergunta-se Tarsila, referindo-se ao "Abaporu". Talvez como fruto de lembranças psìquicas da inféncia, quando os empregados contavam hist�rias de assombraçâo, ou de pesadelos jž esquecidos mas que ficaram gravados no subconsciente. A verdade ë que esse monstro de pës imensos e cabeça minöscula, colocado num cenžrio que representa uma planìcie onde s� aparece o sol e uma espëcie de cacto de cores vibrantes, sugeriu a Oswald de Andrade a figura do homem nativo, do selvagem, do antrop�fago, daì o nome que recebeu: "aba", homem; "poru", que come; abaporu, o que come carne humana, o antrop�fago. (O "Abaporu" estž estudado em outro Material de Apoio, cujo conhecimento poderž provocar o questionamento de outros aspectos nâo explorados nessa aproximaçâo com a arte acadèmica).

Tarsila do Amaral: (Capivari, SP, 1890 - Sâo Paulo, SP, 1973): filha de ricos fazendeiros, iniciou seus estudos de pintura em 1920 sob orientaçâo acadèmica. Estudou na Europa com artistas de vanguarda e, ao voltar ao Brasil, produziu trabalhos que balizaram as duas fases do Modernismo brasileiro: Pau-brasil e Antropofagia.
 

4. Pintores de Nassau
Embora nâo fosse comum a presença de artistas nas primeiras expediç§es enviadas Ç Amërica, Joâo Maurìcio de Nassau afirmou, em carta Ç Luiz XIV, em 1678, ter a sua disposiçâo seis pintores no Brasil, entre os quais Frans Post e Albert Eckhout. Holandeses, flamengos, alemâes, os chamados pintores de Nassau, por nâo serem cat�licos, puderam mais facilmente dedicar-se a temas profanos, o que nâo era permitido aos portugueses. Em conseqÆència disso, foram os primeiros artistas no Brasil e na Amërica a abordar a paisagem, os tipos ëtnicos, a fauna e a flora como temžtica de suas produç§es artìsticas, livres dos preconceitos e das superstiç§es que era de praxe se encontrar nas representaç§es pict�ricas que apresentavam temas americanos. Segundo Miguel Rojas Mix, "em 1637, Maurìcio de Nassau, governador e representante da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, instalou-se em Pernambuco. Em seu sëquito estavam Frans Post e Albert Eckhout, dois artistas que tinham por missâo retratar tudo o que estava vivo, se movia ou respirava. Durante a estada no Brasil, reproduziram fielmente a realidade. Mas, ao retornarem Ç Europa, os compradores nâo acharam seus quadros nem muito ex�ticos, nem suficientemente decorativos. Para atender ao gosto da ëpoca, viram-se obrigados a inventar um Brasil com vegetaçâo confusa e animais extravagantes. Tal foi a imagem 'barroca' da Amërica. (...) O barroco confundia, em um mesmo exotismo, tudo que nâo era europeu".

João Maurício de Nassau-Siegen (Dillenburg, Alemanha, 1604 - Kleve, Alemanha 1679):ligado pelo lado materno Ç casa real da Dinamarca, atingiu o posto de coronel aos 25 anos. Nomeado para governador das possess§es holandesas no Brasil por indicaçâo do prìncipe Frederico Henrique de Orange, sempre demonstrou grande interesse pela ciència, arte e cultura. Nassau permance em terras brasileiras de 1636 a 1644.
Frans Janszoon Post (Haarlen, HOlanda 1612 - 1680): foi pintor, desenhista e gravador. Tinha 24 anos quando chegou ao Brasil, contratado por Nassau, permancendo atë 1644. Sua principal tarefa nas novas terrras foi documentar edifìcios, portos e fortificaç§es. Destcou-se entre os pintores de Nassau: ë considerado o primeiro paisagista a trabalhar nas Amëricas.
 

Comparação

O professor propõe formalmente a comparação, utilizando-se das seguintes perguntas:
Há alguma semelhança temática entre as obras?
Que relações se pode estabelecer entre o momento histórico em que cada quadro foi pintado e as imagens produzidas?
Ao mesmo tempo que tal comparação amplia a experiência do aluno, ela exercita um princípio importante de mediação entre a realidade e a representação artística, situando as obras na sucessão histórica e levando em conta o contexto que as propiciou pela análise dos pontos de contato e de ruptura de dois momentos que, na XXIV Bienal, estão sendo apresentados como possibilidades de leitura antropofágica do canibalismo.
Com o auxílio das informações apresentadas pelo professor neste percurso educativo, os alunos começam a entender e decifrar os significados presentes nas obras, enfatizando o ponto de vista do artista que, de acordo com seu contexto, coloca-se ora como quem transforma o outro a partir de seus valores, ora como quem consome o outro, tirando proveito da aproximação de diferenças.
As dúvidas levantadas pelos alunos devem ser retomadas pelo professor, e podem gerar pontos comuns a serem pesquisados e avaliados durante todo o percurso.
O professor tem a função de mediador desse diálogo, estimulando os alunos a expressarem suas percepções e compartilharem suas inquietações e seus comentários com os colegas.


Investigando aspectos formais: acadêmico x moderno

Justapondo as duas imagens, o professor também pode orientar a comparação entre Eckhout e Tarsila por seus conteúdos temáticos e aspectos formais, explorando principalmente as diferenças que dizem respeito à forma e à cor.
Voltando a observar "Índia Tarairiu"5, estimular os alunos a responder:
Como Eckhout6 constrói a forma? Como usa a cor?
Há semelhanças entre o tratamento da forma em "Índia Tarairiu" e outras obras do artista?
O que esse tratamento da cor e da forma tem em comum com a tendência naturalista de observação, típica da leitura que os artistas holandeses fizeram da realidade brasileira?

Em seguida, observar "Abaporu" e retomar o mesmo roteiro de investigação:
Como Tarsila constrói a forma? Como usa a cor?
Há semelhanças entre o tratamento da forma em "Abaporu" e outras obras da artista?
O que esse tratamento da cor e da forma tem em comum com a tendência
modernista de observação?
Comparando "Índia Tarairiu" e "Abaporu", quais os pontos de contato e de afastamento?
Essa investigação permite introduzir a discussão sobre formas de representação da realidade e informar sobre aspectos formais que diferenciam o moderno do acadêmico, abrindo perspectiva para a consideração da antropofagia e de suas variações possíveis.

 

5. "Índia Tarairiu"
Esta obra de Eckhout ë geralmente publicada sob o tìtulo de "Índia Tapuia". Os tarairius, uma das vžrias tribos que integravam os tapuios, eram especificamente apontados como canibais. O texto de Berta Ribeiro explica quem sâo os tapuias: "Foi sempre devastador o modelo de exploraçâo efetivado pelo branco na Amaz–nia. O primeiro modelo foi o sistema de sesmarias, instituìdo em 1627. Seguiu-se o de capitanias hereditžrias. A base econ–mica era a coleta de produtos nativos, as chamadas 'drogas do sertâo' (cacau, salsaparrilha, urucu, cravo, canela, anil, sementes, raìzes aromžticas, puxuri e baunilha), bem como a fabricaçâo de farinha, tanto de mandioca quanto de peixe (piracuì). Alëm das atividades extrativistas, implantam-se no Maranhâo e no Grâo-Parž engenhos de açöcar para o abastecimento local e para exportaçâo. A essas atividades entregavam-se, alëm das autoridades coloniais, as miss§es religiosas, usando mâo-de-obra indìgena e de tapuios - ìndios genëricos, destribalizados da Amaz–nia. Deveu-se aos tapuios a revolta nativista conhecida como Cabanagem (dos que viviam em cabanas) e que durou de 1834 a 1839. Sua principal reivindicaçâo era a libertaçâo da Amaz–nia da opressâo branca, constituìda, na ëpoca, de nâo mais do que mil pessoas. Os cabanos tomaram Belëm, Vila da Barra (Manaus) e os principais rios amaz–nicos. Dominada a Cabanagem, inicia-se, em 1840, a exploraçâo da seringa. Essa resina elžstica era conhecida e usada pelos ìndios para todo tipo de impermeabilizaçâo".

 

6. Eckhout
A XXIV Bienal de Sâo Paulo pontua a Hist�ria da Arte ocidental por meio de obras dos sëculos XVI, XVII e XVIII com "o objetivo de aproximar significados de hist�rias de canibalismos e procedimentos antropofžgicos engendrados em relaç§es interculturais", segundo Ana Maria Belluzzo, curadora de Eckhout neste evento. A representaçâo da figura humana indìgena na concepçâo europëia dos sëculos XVI e XVII "incorpora a terra americana, guardando-se uma correlaçâo entre corpo e territ�rio, que se referem ao mundo entâo conhecido". A "Índia Tarairiu" integra a sërie de oito personagens que Eckhout produziu como alegoria aos quatro continentes entâo conhecidos (as quatro figuras femininas desses "casais" estâo sendo apresentadas nesta Bienal), e mostra a influència das concepç§es aleg�ricas em uso na ëpoca. "Alëm de rigorosa observaçâo etnogržfica, os quadros exibem riqueza e exuberéncia de pormenores boténicos e zool�gicos, como atributos dos personagens." A alusâo ao canibalismo ë feita por meio da imagem de um pë humano que estž posto na sacola que a ìndia carrega nas costas e na mâo que segura com sua mâo direita, como se fosse um objeto qualquer. Observa-se que a coloraçâo desses membros mortos contrastam com a cor viva do corpo da ìndia.

Albert Eckhout (Groninger, Holanda, 1610 - 1666): veio para o Brasil em 1637 e permaneceu atë 1644, como pintor contratado por Maurìcio de Nassau. Aqui realiza grande parte de sua obra; nela se destacam doze naturezas-mortas com frutas e legumes tropicais, oito representaç§es dos tipos humanas que habitavam o paìs e o quadro "A dança dos tapuia".
 

Propostas de criação

Como experiência prática, o professor pode propor aos alunos exercícios, individuais ou em grupo, que contemplem as questões relativas à oposição acadêmico x moderno, salientando as diferenças fundamentais entre as duas linguagens.

Proposta individual
Recortar figuras humanas contemporâneas de jornais, revistas etc. e inserir, na imagem escolhida, elementos extraídos da pintura de Eckhout, a "Índia Tarairiu". Para tanto, os alunos podem trabalhar com cópias ampliadas, em preto-e-branco ou colorida, da obra, recortar os elementos escolhidos e, num processo de recorte e colagem, montar (criar) uma nova imagem, inserindo a questão da deformação.

Proposta em grupo
Dividir os alunos em dois grandes grupos. O primeiro grupo faz cópia de uma reprodução do "Abaporu" e corta a imagem em pedaços. Cada aluno recebe uma parte e, a partir dessa forma, recria seu "Abaporu". Nessa proposta, os alunos podem utilizar carvão, crayon ou nanquim, para trabalho sem cor, ou pastel e giz de cera, para inserir cor.
O segundo grupo copia uma reprodução da "Índia Tarairiu", corta a imagem em pedaços e cada aluno recebe um pedaço, a partir do qual vai recriar sua índia. O material usado pode ser o mesmo.
Os trabalhos devem ser expostos e os alunos podem registrar sua experiência por escrito, com base na qual o professor avaliará como foram incorporados os conhecimentos e conceitos relativos a Eckhout, sobre o período Nassau, canibalismo e antropofagia, Tarsila e o Modernismo brasileiro7, verificando como os alunos relacionam as questões levantadas, os textos e os conceitos estudados.

 

7. Modernismo brasileiro
A primeira fase do Modernismo brasileiro inicia-se com a Semana de 22 que, por sua vez, tem na exposiçâo de Anita Malfatti e nas obras escult�ricas de Brecheret seus antecedentes. A preocupaçâo central dos modernistas desse perìodo ë colocar a arte brasileira em sintonia com a europëia e produzir obras que, ao mesmo tempo em que rompiam com os padr§es acadèmicos, exaltavam o nacional. O movimento modernista abrangeu vžrias manifestaç§es culturais, e seus principais objetivos eram "o direito Ç pesquisa estëtica, Ç atualizaçâo da inteligència artìstica brasileira e Ç estabilizaçâo de uma consciència criadora nacional" (citaç§es do catžlogo "Semana de 22", de Mžrio de Andrade). A segunda fase da modernidade no Brasil caracterizou-se por enfocar mais agudamente os problemas sociais do paìs, dando Ç arte uma funçâo de militéncia polìtica. Segundo Ana M. Belluzzo, "a poëtica antropofžgica (...) indaga sobre caracterìsticas do Mundo Novo em relaçâo com a cultura do Velho Mundo. Nasce, assim, do encontro de culturas, dando ressonéncia a sentidos polivalentes engendrados nesta relaçâo: culturas em entrechoque. Processos de assimilaçâo e incorporaçâo pela pržtica devoradora e digestiva da cultura do outro. Açâo de catequese. Respostas sincrëticas resultantes da heterogeneidade cultural. (...) Expressa criticamente a perspectiva da sociedade brasileira. (...) Tem na ironia seu procedimento simb�lico, (...) subentendida a necessidade de nos alimentarmos de outras culturas para nossa transformaçâo cultural. Implica tambëm no procedimento bžsico de existència de outro discurso a ser deglutido, possibilitando vantagens de invers§es par�dicas".

Anita Malfatti (Sâo Paulo, SP, 1896 - 1964): pintora brasileira, realizou em 1917, em Sâo Paulo, uma polèmica mostra individual, com obras que seguiam os princìpios da arte moderna europëia. A severa crìtica de Monteiro Lobato a sua "arte anormal" veio a motivar a organizaçâo da Semana de Arte Moderna, em 1922, como reaçâo de seus simpatizantes.
Brecheret (Victor Brecheret, Sâo Paulo, SP, 1894 - 1955): escultor modernista brasileiro, participante da Semana de Arte Moderna. O "Monumento Çs bandeiras" (1936-1953), que fica entre o Parque Ibirapuera e a Assemblëia Legislativa de Sâo Paulo, ë uma de suas obras mais conhecidas e um marco da cidade.
 

Sugest§es de continuidade

O professor poderá valer-se de filmes e documentários históricos ou mesmo de textos literários, articulando esse trabalho com professores de outras áreas e abrindo perspectiva para uma compreensão mais profunda do conceito de antropofagia que, começando pela apropriação objetiva da figura do outro (nesse caso, a antropofagia está no modo de ver europeizado de Eckhout), tem em Tarsila uma opção radical pela identidade brasileira. A reunião contemporânea dessas obras num mesmo Núcleo Histórico possibilita a atualização do conceito de antropofagia e, simultaneamente, a confirmação de que, do ponto de vista do leitor da obra de arte, o ângulo de visão pode tornar presentes obras distantes no tempo histórico de produção, ressignificando-as a partir da leitura.
Como forma de dar continuidade ao trabalho, o professor pode usar as outras pinturas de Eckhout que fazem parte da série "Alegorias dos quatro continentes"8, ressaltando as semelhanças e as diferenças entre as obras, principalmente no que se refere às questões étnicas, cenário etc.
Também é possível analisar o que estava acontecendo nessa época no Brasil e questionar o tipo físico apresentado como índio brasileiro, concluindo a respeito da forma de representação da cultura indígena pelos europeus.
O mesmo exercício pode ser feito com as obras de Tarsila da fase antropofágica ("Antropofagia", "Abaporu", "A negra"), ressaltando os pontos comuns e as principais diferenças entre elas.

 

8. Alegorias dos quatro continentes
Sërie de trabalhos de Eckhout que se relacionam "ao mundo entâo conhecido" e se careacterizam por apresentar a figura humana em pë, tendo ao fundo a paisagem e, em destaque, elementos da flora e da fauna brasileiras. Obedecem a um s� esquema estrutural em que as verticais sâo representadas pelas figuras e pelas žrvores em oposiçâo a uma linha horizontal baixa, geralmente a um terço da altura do quadro. Os personagens geralmente figuram sozinhos em meio Ç abundante vegetaçâo que caracteriza a flora regional. Sâo retratos naturalistas que introuzem novos parémetros e visualidade, pr�prios da pintura holandesa feita no Brasil. O artista nâo mais procura similitudes entre as coisas do universo. A relaçâo que estabelece com a natureza denota regras de observaçâo de ordem fìsica ou cientìfica, conforme o entendimento moderno que dž aos termos.

Segundo Miguel Rojas Mix, "a Amërica estava na moda, nâo s� fazendo gènero ex–tico mas tambëm o aleg�rico: ela passou a ser, desde entâo, uma das quatro partes o mundo, estas figuras femininas, bastante apreciadas na ëpoca, que simbolizavam nos telhados e no alto das escadarias a vontade do poder sem limites do absolutistmo e a nâo menos ambiciosa redençâo da Contra-reforma. O mestre incontestžvel dessa forma artìstica foi Giambattista Tiëpolo, que representa a Amërica como uma amazona - obra-prima do gènero -, a cornuc�pia nas mâos e um crénio humano aos pës. Rica e bžrbara. Rica, ela prometia aos reis uma fortuna ilimitada. Bžrbara, era legìtimo conquistž-la. Deveria ser cristianizada e civilizada: o lucro e sua justificativa estavam assim reunidos em uma önica e mesma imagem".


Glossžrio

Academismo: postura artística inicialmente orientada pelos princípios ecléticos oriundos do estudo da arte greco-romana clássica ensinados nas academias, surgiu na Europa no século XVI.

Antropofagia: tomada como metáfora, refere-se à atitude estético-cultural de "devoração" e assimilação crítica dos valores transplantados ao Brasil pela colonização, além de realçar valores interculturais.

Expressionismo: termo utilizado para descrever obras de arte em que a representação da realidade é distorcida de forma a expressar as emoções ou a visão interior do artista. Na pintura, o impacto emocional é realçado pelo uso deliberado de cores fortes e pela distorção intencional da forma.

Identidades subjetivas culturais: conjunto de características individuais decorrentes da inserção cultural do indivíduo, de seu "estar na cultura, em sociedade".

José de Alencar (Melejana, CE, 1829 - Rio de Janeiro, RJ, 1887): escritor romântico brasileiro. Adepto da literatura com temática indianista e porta-voz dos ideais estéticos e literários do nacionalismo romântico. Alguns de seus livros mais conhecidos no tema são "O Guarani" (1857), "Iracema" (1865) e "Ubirajara" (1874). O índio é idealizado segundo o mito do bom selvagem de Rousseau: a pureza em contraste com o branco corrupto.

Modernismo: surgiu no Brasil do início da década de 20, em São Paulo, abrangendo várias manifestações artísticas (artes plásticas, arquitetura, música, literatura). Propunha uma produção voltada para o nacional, mas aliada às linguagens artísticas das vanguardas européias.

Oswald de Andrade (São Paulo, SP, 1890 - 1954): escritor brasileiro, teórico e articulador do movimento modernista e da Semana de Arte Moderna de 22. Foi casado com Tarsila de 1926 a 1930. Seus textos "Manifesto da poesia pau-brasil" (1924) e "Manifesto antropófago" (1928) sintetizam o ideário poético do Modernismo.

Raul Bopp (Tupaceretã, RS,1899 - Porto Alegre, RS, 1984): poeta brasileiro, ligado ao grupo da Antropofagia, sua obra mais conhecida é "Cobra Norato" (1931). Segundo Tarsila, estava junto com ela e Oswald de Andrade quando decidiram criar o movimento antropofágico.

  Bibliografia

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BELLUZZO, Ana Maria (Org.). "O Brasil dos viajantes". São Paulo: Museu de Arte de São Paulo/ Metalivros, 1994.
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"Cadernos de história da pintura no Brasil: Pintura colonial". São Paulo: Instituto Cultural Itaú, 1994.
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RIBEIRO, Berta G. "Os índios das águas pretas". São Paulo: EDUSP/Cia. das Letras, 1995.
ZANINI, Walter. "História geral da arte no Brasil". São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983.