Volpi: construção e reducionismo sob a luz dos trópicos

A abordagem do trabalho de Alfredo Volpi (1896-1988) pressup�e considera�es sobre o mais not�vel pintor brasileiro contempor�neo. Sua obra se estende pela maior parte das d�cadas deste s�culo a partir dos anos 10, quando come�a a pintar, at� os anos 80, ocaso de sua vida, e, em conseq��ncia, tamb�m de sua obra. Sua pintura se afina substancialmente nos anos 40, per�odo em que revela em plenitude sua potencialidade enquanto artista1. Pintor-pintor, vivendo para pintar, Volpi � um exemplo do artista para quem a arte � seu fim �ltimo. Volpi importava-se pouco com sua carreira, como pode ser hoje entendida a trajet�ria de um artista no sentido de sua proje��o enquanto personalidade. Nada podia diminuir ou impedir sua paix�o pelas tintas, por seu incessante e vital "fazer" pict�rico. Podia pintar num modesto ateli�, como num quarto de 3 x 4 metros, o fundamental � que pudesse ter uma tela diante de si, suporte esse que ele mesmo montava, o tecido sobre o chassis procedia � sua prepara��o, assim como � elabora��o dos pigmentos com que trabalharia. Volpi, podemos dizer, � o nosso Morandi, com quem tem grandes afinidades. Sereno, e extremamente s�rio em rela��o � sua pintura, n�o-verbal, reflexivo, realizava varia�es sobre o mesmo tema, estudos de cor, em telas aparentemente similares, o artista se comprazendo com as diferen�as tonais ou de composi��o. Uma pintura silenciosa, em di�logo consigo mesma, em processo de gradativo desdobramento, como na pintura de naturezas-mortas, nas quais a muta��o de elementos combinados forma novos jogos ao olhar. Ali�s, como nos lembra Domingos Giobbi, as duas grandes admira�es de Volpi na arte contempor�nea eram precisamente Matisse e Morandi. Sintom�tica essa predile��o, pois Matisse encarna a alegria da cor, e Morandi a sutileza crom�tica, ambas presentes, em momentos distintos, na obra de Volpi2.

Por suas caracter�sticas de aparente simplicidade, a figura e a obra de Volpi atrairiam a partir dos anos 40 o cr�tico e psiquiatra Theon Spanudis, e o cr�tico e f�sico M�rio Schenberg, que escreveu a apresenta��o de sua primeira exposi��o individual, em 1944. M�rio Pedrosa seria fascinado pelo trabalho de Volpi a partir de 1954, e sobre ele escreve, em particular quando v� sua retrospectiva no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1957, e desde ent�o o proclama o mestre brasileiro de seu tempo.

Poucos deslocamentos no decorrer de sua vida o afastam de seu bairro, o Cambuci, em S�o Paulo: viagens a Mogi das Cruzes e Itanha�m, em fins dos anos 30, uma viagem breve pelas cidades hist�ricas mineiras em 1944-ocasi�o em que traz telas carregadas de expressionismo retratando cenas religiosas de rua-uma viagem � Bahia em 1954, e outra a Canan�ia, ambas com o cr�tico Theon Spanudis. Mas plena de emo��o seria a viagem realizada � Europa em abril de 1950, onde passa seis meses, acompanhado por dois pintores amigos, M�rio Zanini e Rossi Osir-dez dias em Paris, a maior parte do tempo na It�lia, em Veneza, onde passa 40 dias. Nessa ocasi�o faz dezoito visitas a P�dua para ver os afrescos de Giotto, conhece Roma, N�poles e a Sic�lia.

Nos anos 50 artistas de S�o Paulo e Rio de Janeiro tamb�m ficariam curiosos com a obra de Volpi, que se interessa, nessa d�cada, pelas realiza�es dos concretos, nunca por�m sendo um deles, e realizando obras abstrato-geom�tricas, ao observar, com a agudeza que lhe era peculiar na aplica��o de seu olhar, as experimenta�es desses mo�os dos anos 50. Para Volpi, s�o exerc�cios que ele pratica como num jogo de varia�es que se desdobram em estudos de cor, at� seu esgotamento, ou para partir para outras experimenta�es em que a preocupa��o crom�tica � dominante.

M�rio Pedrosa faz uma clara distin��o entre o "soberbo modelado" de Portinari, "classicamente separado das cores", enfatizando portanto sua excel�ncia enquanto desenho, ao passo que "Tarsila, Volpi, Guignard, Pancetti, se d�o �s cores pelas cores. Amam-nas". E finaliza com a frase: "Volpi �, ali�s, o mestre da cor pura no Brasil"3. Em outro texto Pedrosa, escrevendo a prop�sito da retrospectiva de Volpi no Rio de Janeiro, diria que "representa o grito de independ�ncia da pintura brasileira em face da pintura internacional ou da Escola de Paris".4 Essa afirma��o se aproxima daquela de um cr�tico franc�s nos anos 20, Maurice Raynal, ao se referir � pintura de Tarsila nessa d�cada5. Ambos, tanto o cr�tico franc�s quanto Pedrosa se baseiam, portanto, na preocupa��o moderna de assinalar um artista que pudesse ser identificado com o Brasil. Artista que, embora impregnado, por meio de sua forma��o no campo da visualidade, de obras de v�rias �pocas e de artistas que admira, n�o deixa de trazer para a tela uma peculiaridade que tem muito a ver com a nossa realidade. Essa preocupa��o digamos, pol�tica, por parte do cr�tico, de localizar o artista dentro de seu espa�o/tempo, corresponde a toda uma postura geracional hoje n�o mais existente. Embora os especialistas de fora insistam em querer identificar nossa realidade pol�tico-social assim como nossa visualidade tropical ou subtropical com a obra de nossos artistas.






1. Seus pr�prios contempor�neos j� lhe reconheciam, em in�cios dos anos 40, "um amadurecimento que vai alcan�ando nestes �ltimos tempos o seu �pice". Assim o registra o cr�tico Sergio Milliet, sob o pseud�nimo de "S. de Santo Adolfo" em texto de 1941, em que menciona estar Volpi fixando-se no "essencial, numa s�ntese ousada e de grande for�a expressiva". E termina dizendo: "No se encontrar a si mesmo, o que Volpi vem conseguindo, sem preocupa�es atualistas ou sociais, encontra o artista o homem de carne e osso, de paix�es, de sofrimentos: o poeta. E � o poeta na sua encarna��o pl�stica que eu admiro em Volpi, chefe de fila acatado por quase todos os artistas de S�o Paulo e, na sua incomensur�vel mod�stia, t�o ignorado do grande p�blico". "Alfredo Volpi", Planalto, 15.10.1941. Apud CD-ROM Alfredo Volpi, Sociedade para Cataloga��o da Obra de Alfredo Volpi, Logos Engenharia S.A./APK.


2. No caso de Volpi poder-se-ia dizer o mesmo que Robert Hughes registrou a prop�sito de Morandi quando de sua retrospectiva no Museu Guggenheim de Nova York, em 1981: "E se as formas s�o simples, sua simplicidade � muito enganadora: pode-se reconhecer nelas a destila��o de uma sensibilidade muito pura, sob cujo olhar o tamanho da pintura, o sil�ncio do motivo e a profundidade interior do olhar s�o uma coisa s�". Robert Hughes, "Giorgio Morandi", apud A toda cr�tica (Ensayos sobre arte y artistas), Barcelona: Editorial Anagrama, 1992, p.215-218.


3. M�rio Pedrosa, "A Primeira Bienal", apud Mundo homem arte em crise, S�o Paulo: Perspectiva, 1975, p.261.


4. M�rio Pedrosa, "O mestre brasileiro de sua �poca", apud Dos murais de Portinari aos espa�os de Brasilia, S�o Paulo: Perspectiva, 1981, p.62.


5. Maurice Raynal refere-se �s "luminosas e cativantes composi�es de Tarsila cujo esfor�o deve marcar uma data na hist�ria da autonomia art�stica do Brasil". Exposition Tarsila, l'intransigeant, Paris, 13.6.1926, apud Cat�logo Tarsila/S.Paulo1929, p.12, trad. A.A.

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