Bom o bastante para se comer: sobre Richter, Polke e a exploração do artista por ele mesmo Annelle Lütgens


"O amor quer expor a si mesmo, quer se fundir com sua v�tima como o vencedor com o vencido, sem abrir m�o das prerrogativas do vencedor."
-Charles Baudelaire

A busca de algo imposs�vel, de uma arte despersonalizada, que consiste em criar, como pessoa, algo impessoal (ou suprapessoal), permeia os movimentos est�ticos e os manifestos do s�culo XX, do futurismo ao surrealismo, cujo modelo de criatividade continua a existir no informal. O surrealismo parte do pressuposto de um inconsciente natural no ser humano, em comunh�o com uma natureza inconsciente, e que de forma an�loga � natureza d� origem a algo: a arte.

A antropofagia, como parte destas estrat�gias est�ticas da vanguarda europ�ia, significa, por um lado, uma propaga��o ofensiva de formas de agir irracionalistas, como a aniquila��o da cultura dominante pelo ato de consumir. Paralelamente, ela compartilha da imagem profundamente rom�ntica, que existe at� hoje, do artista que se consome a si mesmo: o artista que "corr�i o pr�prio cora��o", que tem de transformar a si mesmo e ao mundo em objeto, para produzir arte.

Em oposi��o a esta abordagem destrutiva, a teoria antropof�gica desenvolvida nos anos 20 pela pintora brasileira Tarsila do Amaral e pelo fil�sofo e escritor Oswald de Andrade, que remete �s ra�zes da sua pr�pria civiliza��o, parece-me ter sua base num �mpeto mais construtivo: a reconstru��o da pr�pria hist�ria, a redefini��o anticolonialista da agressividade antropof�gica, o fim da explora��o predat�ria da natureza e a repress�o social.

Gerhard Richter e Sigmar Polke s�o dois artistas que, com sua forma de trabalhar, derrubaram o mito do g�nio ou, como diria Foucault, do autor: sua arte se fecha a qualquer ideologia, sua pintura figura como reflex�o sobre as possibilidades da pintura ou da hist�ria da arte, sua arte est� aberta ao acaso e ao banal.

Quero modificar um pouco o trecho citado de Baudelaire para os dois artistas, a fim de caracterizar os diferentes vest�gios de antropofagia que se encontram tanto na obra de Polke como na de Richter. Para Gerhard Richter, poderia ser: a pintura quer sair de si mesma, fundir-se com sua v�tima, a fotografia, como o vencedor com o vencido, sem abrir m�o das prerrogativas do vencedor. Para Sigmar Polke, poderia ser: a vida quer se expor a si mesma, fundir-se com sua v�tima, o artista, como o vencedor com o vencido, cedendo-lhe as prerrogativas do vencedor.

Polke representa a passividade: o artista como meio, que se deixa tomar, dominar, devorar pelo acaso. Servir de pasto � vida, para que da� surja arte. Em Richter, vejo o antrop�fago ativo, deglutindo sua hist�ria atrav�s do tema, devolvendo-o depois.

A obra 48 Portr�ts [48 retratos] de Richter, do ano de 1972, � declaradamente uma busca pelo pai. Ao mesmo tempo, a obra se distancia da hist�ria patriarcal da cultura. Os diversos passos da degluti��o e devolu��o do tema s�o conhecidos: come�a com a aquisi��o do material (retratos retirados de enciclop�dias, do tamanho de selos postais); depois, Richter transforma este material em uma outra forma de arte visual, em pintura. Neste processo, h� uma transposi��o para um formato maior, uma unifica��o formal e uma uniformiza��o durante o processo de pintura. O pr�ximo passo � a montagem no lugar escolhido, o pavilh�o alem�o da Bienal de Veneza. Para serem mostrados no Museum Ludwig, em Col�nia, onde o trabalho est� exposto desde 1980, os 48 Portr�ts foram refor�ados por molduras de plexiglas e colocados, em um bloco, em fileiras de quatro ou cinco. Ao mesmo tempo, Richter reconverteu as imagens em fotos, fazendo das pinturas fotografias em escala de 1:1. Esta s�rie de fotos tamb�m esteve exposta por algum tempo no museu. Recentemente, Richter chegou at� a produzir uma edi��o fotogr�fica. Com o mesmo tamanho e as mesmas molduras dos quadros, as pinturas e suas imagens s�o cada vez mais dif�ceis de distinguir umas das outras.

O que começou como pilhagem da representação da cultura burguesa e de seus códigos, termina como exploração da própria obra artística. É apropriação em duplo sentido. Com este ir e vir entre fotografia e pintura, Richter faz, na área da expressão artística, o mesmo que fez em Veneza com a distribuição espacial no Salão da Vitória: apagar fronteiras, esvaziar o significado. As idéias perderam sua autoridade; as personalidades famosas, sua individualidade; a fotografia e a pintura, seu respectivo caráter específico. O que resta dos domini famosi são cascas de insetos vazias e secas, espetadas numa base e protegidas por vidro, esquecidas no museu, lugar onde depositamos os bens da nossa cultura humanística. Amostras sem valor.

Richter pertence à geração pós-guerra, que colocou em dúvida os representantes da sua herança cultural, e é como representante desta geração que Richter desenvolve seu questionamento distanciado e preciso dos antepassados. Em 1968, quando o movimento estudantil na Alemanha Ocidental chamou a atenção para o passado nazista das universidades alemãs, com o slogan "Sob o manto acadêmico, o odor bolorento de mil anos", o que se queria não eram somente outros mestres, eram também outros conteúdos. No início dos anos 70, realizaram-se mudanças na política alemã ocidental, que fizeram história em relação à forma de encarar o passado. O governo social-liberal acabou com o revanchismo na política externa e firmou um contrato determinando as bases da convivência com a DDR e o reconhecimento mútuo dos dois países. A reforma do ensino tornou-se um dos pontos principais da política interna.

Diante desse pano de fundo histórico, a instalação de 48 Porträts no pavilhão alemão da Bienal de Veneza certamente parecia ainda mais irônica e de duplo sentido. A encenação nostálgica como salão da vitória, onde os visitantes eram obrigados a passar por uma série de quadros pendurados um a um, à altura dos olhos, obrigava ao distanciamento, porque as linhas e superfícies imprecisas das fotografias pintadas causavam uma imprecisão ótica das cabeças retratadas. Ao mesmo tempo, era impossível não perceber que os retratos tinham sua origem na fotografia destinada a reduzir as características individuais ao formato 3 x 4. O esvaziamento da fotografia é tema tanto na obra de Richter quanto na de Polke, da mesma forma que a pintura a partir do ponto zero. Ela só se torna visível num cinza monocromático, em pontos de um esquema.

Sigmar Polke, o alquimista, faz o material trabalhar para ele, nos seus trabalhos da década de 70. Ele desencadeia um processo químico e espera, para ver o que acontece: amalgamação, fusão do objeto, da representação fotográfica, o processo fotoquímico, dobras de papel e vestígios da interferência do artista. Todos estes ingredientes juntos criam o quadro. As substâncias químicas agridem a imagem e a dissolvem parcialmente. Polke, que adora os pontos esquemáticos, a menor unidade formal da reprodução da imagem, e os insere nas suas pinturas como fermento que dissolve, também não deixa a fotografia original intacta. A imagem tem de se dissolver. Estes vestígios de destruição e dissolução são necessários para que o conteúdo de realidade das fotografias volte a estar correto, já que Polke não confia na foto tradicional, estática e descritiva. Ela não diz nada. O fluxo característico de tudo que vive é documentado pelo interfluir dos produtos químicos na fotografia. Esta é a postura de Polke em relação ao processo fotográfico: quebrar as regras leva a resultados mais interessantes. Não seguir a cartilha, não domar as substâncias químicas, não fazer uma reação "certa", com um objetivo, mas sim deixá-las desenvolverem-se sem objetivo específico. Com o slogan "Reveladores e fixadores de todo o mundo, uni-vos!" chega-se a uma revolução na câmara escura.

O que este princípio anarquista faz com os temas das fotografias? Por exemplo, com Bärenkampf [Luta do urso], 1974, documentação fotográfica de uma diversão popular campestre no Afeganistão. O que se exp�e é a luta animal ritualizada entre um urso e vários cães. Reconhecemos homens que incitam seus cães a atacar o urso, espectadores vestidos com burnus, que acompanham o que acontece, sentados ou em pé, num morro baixo. Alguns têm sua bicicleta largada no chão diante deles. A questão não é como a luta vai terminar, só, no máximo, quanto tempo vai demorar para que a figura maciça e escura do urso seja morta pelas mordidas dos cães velozes e de cor clara.

Polke dobra e enrola o papel fotográfico, retarda a revelação e toma cuidado para que as substâncias se espalhem de forma irregular no papel. Como vai terminar esta luta das substâncias químicas? O que vai sobrar do tema fotografado? Polke fica com pena e salva o urso, dispondo as dobras horizontais e verticais de tal maneira que o urso, que sempre se encontra no centro da foto, rodeado pelos cães, seus agressores, não seja aniquilado também pelos produtos químicos da revelação.