O artista verdadeiro


"Nem anjo nem fera, mas homem." Essa é a fórmula que Blaise Pascal usou para classificar a natureza humana. A exemplo de muitos filósofos de tempos mais antigos-e a exemplo de muitos de hoje ainda-, somente ao nos contrapormos com os absolutos observados é que poderíamos avaliar nossas características essenciais. Os homens (e as mulheres) eram definidos pelo que não eram. Na equação de Pascal, isso significava pairar abaixo do coro seráfico e acima da manada animal.

Michel de Montaigne, predecessor de Pascal, tinha visão menos categórica desses assuntos, mas o jogo dialético dos contrários lhe aguçava o fio do pensamento. Primeiro ensaísta da Era das Explorações, Montaigne dominou rapidamente as suposições auto-elogiosas que a Europa aplicava aos povos e continentes recém-"descobertos". Ansiosos para justificar sua missão de força civilizadora nos ermos do Novo Mundo, os europeus que cruzavam os oceanos se apressavam em designar pela palavra "bárbaros" os costumes das populações indígenas com que deparavam. Histórias de nudez bestial e de um apetite "inatural" pela carne da própria espécie representavam os extremos a que chegava a "barbárie" nas regiões externas de Terra Firma. Assim nasciam os "canibais". E no Brasil, aliás. É óbvia a conveniência ideológica do canibal para os colonizadores europeus; sua utilidade para Montaigne foi inesperada na mesma medida. Pois nesses "nativos" temidos-três dos quais o pensador de poltrona teve ocasião de observar na cidade de Ruão, aonde tinham ido em cativeiro régio-Montaigne viu uma nobreza que levantava dúvidas sobre a "barbárie" maior da própria cultura a que pertencia, corrupta e belicosa.

Na tradição ocidental, os preceitos dicotômicos nos assombram a auto-avaliação a cada passo. Siga-se a lógica de Pascal, e o que é "inumano" fica ou abaixo ou acima de nós. Aplique-se o padrão cético de Montaigne, e a "inumanidade" dá nome a costumes alienígenas que valem principalmente pela luz que lançam sobre as manchas da nossa conduta, para as quais o hábito nos cegou. Combinem-se ambas as abordagens-a rígida oposição que Pascal coloca entre exaltação e aviltamento e a interpretação inortodoxa que Montaigne dá a contradições inerentes-e podemos discernir os rudimentos de um método para lidar com uma criatura cuja auto-imagem oscila desesperadamente entre o "melhor" e o "pior" que consegue conceber, entre a coesão essencial pela qual anseia e o estado de desunião que a descoberta dos "outros" se destina a resolver, mas na verdade corrobora.

O arcabouço filosófico de Bruce Nauman pertence à nossa era, não àquela em que Pascal apostava que o estado de graça poderia existir mas jamais seria alcançado pela razão, ou em que a interpretação crítica de Montaigne das imperfeições do homem originou o "nobre selvagem" que come seus semelhantes, embora o faça com dignidade exemplar. A visão de Nauman, muitas vezes áspera, não corresponde nem mesmo àquela de um quase contemporâneo de Pascal, Thomas Hobbes, o materialista inglês que via o homem, "em estado natural", como um animal em guerra contra outros animais, para quem a vida era "torpe, animalesca e curta". Ao contrário, Nauman pertence a uma geração cujos pontos de referência intelectuais abrangem B. F. Skinner e Ludwig Wittgenstein, isto é, a psicologia do comportamento e a teoria lingüística-com topologia no meio. Mesmo assim, no repertório de temas e imagens de Nauman podemos claramente distinguir um padrão de termos e contratermos, que evocam as polaridades clássicas que acabamos de mencionar.

Em um extremo filosófico da obra de Nauman acha-se o idealismo aparentemente não qualificado da simples frase "O artista verdadeiro é uma surpreendente fonte luminosa". Esta declaração manifestamente romântica-que surgiu pela primeira vez, em 1966, numa cortina de plástico transparente no ateliê de Nauman e, mais tarde, em uma exposição de 1968, na forma de letras de quebra-cabeça ao redor de um vão de porta-equipara-se em fervor moral às palavras de um néon de 1967, em que se lia: "O artista verdadeiro ajuda o mundo porque revela verdades místicas". Quando digo que a primeira, assim como a última, indica um idealismo "aparentemente não qualificado", o elemento de incerteza que Nauman introduz é coerente com sua asserção literal. Não estamos lidando aqui com a ironia sistemática à Duchamp, muito menos com uma espécie mais contemporânea de cinismo de Salon, mas antes com a ressonância concordante entre a afirmação esperançosa e a dúvida que corrói.

Ao usar o néon para sugerir proposições metafísicas em público, em vez de lampejar mensagens comerciais, Nauman punha à prova a convicção estética de seu público, junto com a dele mesmo, em uma mídia normalmente empregada por piratas publicitários. "Você vai †comprarË essa idéia da vocação do †artista verdadeiroË?", é o que o sinal suplica com franqueza ao espectador ofuscado; "Será que compro essa idéia?", pergunta implicitamente a si mesmo o autor quando o clarão do néon o atinge. O texto do vão de porta de 1968 provoca a mesma ambivalência. Ao passarmos por baixo dele, estaremos concordando tacitamente com a crença de que o artista é um ser inspirado e a galeria, um recinto quase sagrado? A versão final da obra, em que as letras que a compunham estavam agora misturadas no chão, parecia colocar para sempre fora do alcance o potencial de significado da sentença; ainda assim, de algum modo, sabedores do significado que um dia tiveram, esses pedaços esfacelados de palavras continuam a emitir uma aura conceitual.

Além disso, é claro, há a personificação fotográfica de uma fonte (1966“67) de Nauman. Será o homem de peito nu dessa figura a encarnação recente de um demiurgo grego ou estará apenas cuspindo besteirol? Estará caçoando da arte, do artista ou do público·de sua disciplina, de si mesmo ou de nós? Ou será oráculo de um ceticismo geral que, ao mesmo tempo que dá um beliscão nas crenças culturais convencionais, é capaz de trazer à tona um anseio coletivo pela revelação estética, caso em que esta persona ambígua representa, afinal, uma fonte de verdade mistificadora, senão mística?

No outro extremo filosófico está o pessimismo alucinatório de peças formalmente semelhantes, como é o caso do néon de 1972 EAT/DEATH [COMER/MORTE]. Recorrendo uma vez mais à arte do fazedor de sinais·explorando, desta vez, a sobreposição de textos eletronicamente sincronizados·, este painel de mensagens liga-desliga enquadra a primeira palavra, aparentemente positiva, à fria luz da segunda, negativa, e reduz a busca de alimento a uma luta basicamente inútil contra a morte. Ao transformar efetivamente a expressão convencional "Comer para viver" em "Comer para morrer", Nauman exprime com impiedosa concisão o destino do homem·e sua oralidade avassaladora. Em From hand to mouth [Da mão à boca] (1967), Nauman faz igualmente uso de um pouco do linguajar comum, literalmente transfigurando-o de forma tal que a idéia originalmente expressa, de prolongar a existência pelo uso do alimento que esteja mais à mão, torna-se um símbolo perturbadoramente complexo não só da vida de subsistência mas também do elo entre ato e expressão vocal, entre palavra e feito.

Desenhos como Punch and Judy II birth & life & sex & death1 [Polichinelo e sua mulher II nascimento & vida & sexo & morte] (1985) desenvolvem essa luta pela sobrevivência sem oferecer nenhuma outra razão para se ter esperança. O estudo em escala real de outro néon sincronizado, em que uma silhueta masculina e outra feminina se defrontam e em seguida matam uma a outra, matam-se ou "comem" sexualmente seus doppelgängers2, retrata a fantochada das compulsões humanas como "torpe e animalesca", mas sem-fim, em vez de misericordiosamente "curta", como na máxima de Hobbes.

Em estudos correlatos, figuras arquetípicas semelhantes reencenam a batalha dos sexos em variações comparavelmente grotescas dessa orgia assassina, ao passo que, em outros desenhos e néons, antagonistas do mesmo sexo enfrentam-se em duelos fálicos grosseiros e em disputas a tapa; e, em outros mais, cabeças e mãos se confrontam a espetar o nariz e cutucar os olhos do oponente, assinalando uma progressão que vai da agressão sexual burlesca à intimidade regressiva e à violação e, por fim, quando uma cabeça solitária engole o muco que goteja do próprio nariz, à autofagia primitiva. Assim retratada, a "natureza humana" fica inteiramente condicionada à crueza dos apetites e suas frustrações inevitáveis. Os homens e as mulheres que povoam essas imagens infernais pareceriam estar fora do poder de ajuda do "artista verdadeiro" e, dada a intensidade com que Nauman descreve as degradações de rotina deles·intensidade disparada pela identificação com elas·, pode-se suspeitar que o próprio "artista verdadeiro" também esteja entre os amaldiçoados.





1. O título alude à expressão Punch-and-Judy show, espetáculo de títeres ou marionetes em que o Polichinelo briga constantemente com a mulher [N. do T.].


2. Em alemão, doppelgänger designa um companheiro e contraparte espiritual de alguém: um duplo ou sósia espectral [N. do T.].