O artista verdadeiro
Ao usar o néon para sugerir proposições metafísicas em público, em vez de lampejar mensagens comerciais, Nauman punha à prova a convicção estética de seu público, junto com a dele mesmo, em uma mídia normalmente empregada por piratas publicitários. "Você vai †comprarË essa idéia da vocação do †artista verdadeiroË?", é o que o sinal suplica com franqueza ao espectador ofuscado; "Será que compro essa idéia?", pergunta implicitamente a si mesmo o autor quando o clarão do néon o atinge. O texto do vão de porta de 1968 provoca a mesma ambivalência. Ao passarmos por baixo dele, estaremos concordando tacitamente com a crença de que o artista é um ser inspirado e a galeria, um recinto quase sagrado? A versão final da obra, em que as letras que a compunham estavam agora misturadas no chão, parecia colocar para sempre fora do alcance o potencial de significado da sentença; ainda assim, de algum modo, sabedores do significado que um dia tiveram, esses pedaços esfacelados de palavras continuam a emitir uma aura conceitual. Além disso, é claro, há a personificação fotográfica de uma fonte (1966“67) de Nauman. Será o homem de peito nu dessa figura a encarnação recente de um demiurgo grego ou estará apenas cuspindo besteirol? Estará caçoando da arte, do artista ou do público·de sua disciplina, de si mesmo ou de nós? Ou será oráculo de um ceticismo geral que, ao mesmo tempo que dá um beliscão nas crenças culturais convencionais, é capaz de trazer à tona um anseio coletivo pela revelação estética, caso em que esta persona ambígua representa, afinal, uma fonte de verdade mistificadora, senão mística? No outro extremo filosófico está o pessimismo alucinatório de peças formalmente semelhantes, como é o caso do néon de 1972 EAT/DEATH [COMER/MORTE]. Recorrendo uma vez mais à arte do fazedor de sinais·explorando, desta vez, a sobreposição de textos eletronicamente sincronizados·, este painel de mensagens liga-desliga enquadra a primeira palavra, aparentemente positiva, à fria luz da segunda, negativa, e reduz a busca de alimento a uma luta basicamente inútil contra a morte. Ao transformar efetivamente a expressão convencional "Comer para viver" em "Comer para morrer", Nauman exprime com impiedosa concisão o destino do homem·e sua oralidade avassaladora. Em From hand to mouth [Da mão à boca] (1967), Nauman faz igualmente uso de um pouco do linguajar comum, literalmente transfigurando-o de forma tal que a idéia originalmente expressa, de prolongar a existência pelo uso do alimento que esteja mais à mão, torna-se um símbolo perturbadoramente complexo não só da vida de subsistência mas também do elo entre ato e expressão vocal, entre palavra e feito. Desenhos como Punch and Judy II birth & life & sex & death1 [Polichinelo e sua mulher II nascimento & vida & sexo & morte] (1985) desenvolvem essa luta pela sobrevivência sem oferecer nenhuma outra razão para se ter esperança. O estudo em escala real de outro néon sincronizado, em que uma silhueta masculina e outra feminina se defrontam e em seguida matam uma a outra, matam-se ou "comem" sexualmente seus doppelgängers2, retrata a fantochada das compulsões humanas como "torpe e animalesca", mas sem-fim, em vez de misericordiosamente "curta", como na máxima de Hobbes. Em estudos correlatos, figuras arquetípicas semelhantes reencenam a batalha dos sexos em variações comparavelmente grotescas dessa orgia assassina, ao passo que, em outros desenhos e néons, antagonistas do mesmo sexo enfrentam-se em duelos fálicos grosseiros e em disputas a tapa; e, em outros mais, cabeças e mãos se confrontam a espetar o nariz e cutucar os olhos do oponente, assinalando uma progressão que vai da agressão sexual burlesca à intimidade regressiva e à violação e, por fim, quando uma cabeça solitária engole o muco que goteja do próprio nariz, à autofagia primitiva. Assim retratada, a "natureza humana" fica inteiramente condicionada à crueza dos apetites e suas frustrações inevitáveis. Os homens e as mulheres que povoam essas imagens infernais pareceriam estar fora do poder de ajuda do "artista verdadeiro" e, dada a intensidade com que Nauman descreve as degradações de rotina deles·intensidade disparada pela identificação com elas·, pode-se suspeitar que o próprio "artista verdadeiro" também esteja entre os amaldiçoados. 1. O título alude à expressão Punch-and-Judy show, espetáculo de títeres ou marionetes em que o Polichinelo briga constantemente com a mulher [N. do T.].
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