A cor no modernismo brasileiro�a navegação com muitas bússolas



A cor na obra de Anita Malfatti explode fulgurante em Nova York (1915-1917) para esmaecer no Brasil. Aqui sua pintura mingua a vibra��o crom�tica expressionista. Tropical, sua primeira pintura importante feita no Brasil, beira o retrocesso. Transforma a alegria tropical em lamento1. Retoma o desenho como guia seguro, rep�e a rela��o figura/fundo e perde luminosidade. Parece lan�ar-se � disputa renascentista disegno versus colore. N�o h� mais as ousadias de O homem amarelo. Paradoxalmente, morre a cor nos tr�picos. Tudo volta ao bom comportamento acad�mico, como protestava M�rio de Andrade. Frente � pintura de Malfatti, o escritor Monteiro Lobato formulou sua perplexidade, que arrasou emocionalmente a artista: "paran�ia ou mistifica��o?"2 � a d�vida da voz patriarcal: sendo isto obra de uma mulher, � compar�vel a qual responsabilidade civil limitada: � arte dos loucos ou � arte inconseq�ente das crian�as? Reagindo �s press�es do meio, Malfatti desconfirmaria suas observa�es de fen�menos crom�ticos. Tanto seria a m�rtir involunt�ria do modernismo quanto uma esp�cie de �ndice da impossibilidade de ser moderna em sua terra.

Pouco antes da Semana de Arte Moderna, Gra�a Aranha, um de seus promotores, publica Est�tica da vida, apontando a falta de comunh�o da alma brasileira com a natureza, porque as "tr�s ra�as" formadoras do Brasil atuavam por um artificialismo cultural. A melancolia portuguesa, a "infantilidade africana" (ilusionista frente � realidade natural, produzindo "terror c�smico") e a "metaf�sica do terror" dos �ndios (enchendo de fantasmas os espa�os entre o esp�rito humano e a natureza)3. Urgia transformar sensa�es em paisagem-cor, linha, planos, massas-em arte. "A cultura brasileira dever� se constituir a partir de uma nova rela��o com a natureza brasileira", observa Eduardo Jardim de Moraes, avaliando o peso inicial de Gra�a Aranha sobre o modernismo4. Para Benedito Nunes, Oswald de Andrade operou "uma invers�o parod�stica da filosofia de Gra�a Aranha": a metaf�sica b�rbara � recuperada em antropofagia5.

Vicente do Rego Monteiro inaugura o projeto modernista de cor. Estudou e desenhou objetos da arqueologia amaz�nica no Museu Nacional do Rio de Janeiro (1920) e no Mus�e de l'Homme de Paris (1923). Leu Barbosa Rodrigues e Couto Magalh�es6. Debret o inspira em O atirador de arco (1925). Seus desenhos sobre lendas ind�genas7 exibidos no Rio de Janeiro em 1921 s�o um marco inicial do processo de formula��o da brasilidade e revogam o modelo de �ndio de Chateaubriand. A obra de Rego Monteiro incorporou valores pl�sticos amaz�nicos como paleta, volume, forma e redu��o da figura. As cores evocam terra cozida e a pintura em engobe. Suas figuras t�m uma vontade de volumetria como relevos de cer�mica. � mesmo poss�vel retra�ar a rela��o entre pe�as de cer�mica espec�ficas copiadas e a reelabora��o formal em sua pintura. Nas telas Menino sentado (1923) e Madona e menino (1924), a crian�a sai de uma cer�mica Santar�m de base lunar. Cabe�a, orelha, seios e pernas dobradas em paralelo dessa madona seguem os padr�es das urnas ossu�rias Tapaj�s-Trombetas de Miracangueira, como nas pe�as (Inv. 9702 e 8628) do museu carioca. As urnas funer�rias com figura sobre tartaruga de Marac� (Amap�), desenhadas no museu parisiense, semelhantes �s do Museu Nacional (Inv. 5445), s�o a fonte direta para a tela O menino e a tartaruga (1924). As cabe�as dos seus personagens na s�rie religiosa (1922-1925) de A crucifix�o, Fuga para o Egito, A descida da cruz, A adora��o dos reis magos e A santa ceia inspiram-se nas tampas em forma de cabe�a das urnas Marac�, copiadas no Rio de Janeiro. Embora sem a mesma elabora��o te�rica, Rego Monteiro precede a Torres-Garc�a na incorpora��o dos aspectos simb�licos das culturas nativas da Am�rica. Torres-Garc�a elaborar� parcialmente um modelo de dimens�o continental, porque o territ�rio uruguaio n�o � uma prov�ncia arqueol�gica marcante. A cer�mica mais complexa no Brasil � proveniente da Amaz�nia8. Analisando a crise da id�ia de hist�ria, afirma Gianni Vattimo que "fil�sofos do Iluminismo, Hegel, Marx, positivistas, historicistas de todo tipo pensavam, mais ou menos todos eles do mesmo modo, que o sentido da hist�ria era a realiza��o da civiliza��o, quer dizer, da forma do homem europeu moderno".9 Insistimos em que, se para Hegel a selva era espa�o fora da hist�ria, para os artistas brasileiros seria a �nica possibilidade para afirmar uma hist�ria aut�ctone, anterior � coloniza��o, no projeto pol�tico moderno de emancipa��o cultural.

Nos anos 40, o escultor Victor Brecheret gravou seis pedras incisas10, inscrevendo símbolos arcaicos amazônicos na forma natural da pedra rolada pela água. É o caso Luta de onça e Índia e o peixe. Um precedente é a escultura de Max Ernst, Oval bird [Pássaro oval] (1934), cujo provável paralelo para William Rubin seria o objeto Bird-Man [Pássaro-Homem] da Ilha de Páscoa (British Museum). Ernst esculpe na pedra rolada. Brecheret grava a superfície com uma interferência econômica, para fixar cosmogonias e identidade. A história é escritura a ser decifrada.

O hedonismo de Di Cavalcanti se inscreve como auto-representação da arte de mestiçagem. Sua pintura Samba, como o carnaval carioca, é a "festa da raça" do "Manifesto pau-brasil" (1924), de Oswald de Andrade. Luis Martins diz que dos quadros de Di "exala um cheiro forte, penetrante e lúbrico de mulatas despidas".11 Hans Nobauer, do círculo de Guignard, pinta o primeiro desfile da Mangueira, que seria depois o território antropofágico de Hélio Oiticica. Na cartografia do carnaval, Tarsila vai ao subúrbio carioca de Madureira, terra das escolas de samba Portela e Império Serrano, cercanias do morro da Serrinha, lugar de jongo. Ali encontra a torre Eiffel na decoração da folia. Numa década em que é necessário ir à Europa, a pintura Rio/Paris de Ismael Néri é outra alegoria do significado da cultura francesa para o modernismo brasileiro.

"No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite", anuncia Mário de Andrade. A natureza na brasilidade modernista é simbolizada na selva. "Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade", anotou Oswald de Andrade no "Manifesto antropófago". Muito antes, Mário de Andrade havia convocado Tarsila a retornar às raízes nacionais, que era aquele mesmo mato: "volta para dentro de ti mesma. [. . .] Abandona Paris! Tarsila! Vem para a mata-virgem".12 Tarsila veio e inventa um Brasil em pintura moderna13.

É em Paris que Tarsila descobre o Brasil. Viajara com Oswald de Andrade e estuda com Lhote, Gleizes e Léger. É em Paris que descobrem um outro olhar sobre o negro, cultura desautorizada no Brasil na ideologia remanescente da tradição escravocrata brasileira e ausente na pintura acadêmica brasileira�quase excluído na pintura de Almeida Júnior e presença controvertida na obra de Modesto Brocos.

A negra é obra episódica do ano de 1923. Nesse ano, Tarsila e Oswald conhecem Blaise Cendrars, que os apresenta a Brancusi. Cendrars sempre teve afinidade com a cultura africana. Sua Anthologie nègre era conhecida de Oswald. O casal convive com outros brasileiros que elaboravam em Paris seus projetos de brasilidade. Villa-Lobos avançara com sua música de fusão de heranças européias, indígenas e africanas. Rego Monteiro já dera clareza a seu projeto de arcaísmo indigenista. Tarsila pinta A negra. Em sua conferência sobre o Brasil em 1923, Oswald afirma sentir em Paris "a presença sugestiva do tambor negro e do canto do índio. Estas forças étnicas estão em plena modernidade". Concluindo, menciona Rego Monteiro "que se lançou de maneira particular na estilização de nossos motivos indígenas [. . .] Tarsila do Amaral que alia os assuntos do campo brasileiro aos processos mais avançados da pintura atual".14

A monumentalidade de A negra, Abaporu e Antropofagia tem sua gênese. Em 1923, o muralismo mexicano apenas engatinha. O Traité du paysage de Lhote oferece pistas, inseguras porque sua primeira edição data de 1939. Lhote afirma que "EXAGERAR, DIMINUIR, SUPRIMIR são as três operações que o artista deve constantemente praticar. Trate-se de linhas, valores, cores ou superfícies".15 É necessário entender o que pensava e pintava Léger por volta de 1923, quando Tarsila freqüenta seu ateliê16. Num artigo afirma que "a exposição dos volumes, das linhas e das cores exige uma orquestração e uma ordem absolutas", concluindo sobre o "o estado de intensidade plástica organizada" diz que "por isso aplico a lei dos contrastes, que é eterna como meio de equivalência à vida".17 Léger, em textos como "À propos de l�élement méchanique" [A propósito do elemento mecânico], preocupava-se com a mecanização da pintura. "Vivemos em um mundo geométrico, é inegável, e também em um estado freqüentemente de contrastes."18 O Rio e São Paulo de Tarsila são bucólicos frente à agitação da cidade européia do futurismo e do cubismo.







1. Aqui parafraseamos Gra�a Aranha em Est�tica da vida (1921).


2. Monteiro Lobato, "A prop�sito da Exposi��o Malfatti", Arte e Artistas, O estado de S. Paulo, 20.12.1917, in M�rio da Silva Brito, Hist�ria do modernismo brasileiro, Rio de Janeiro: Civiliza��o Brasileira, 6� ed., 1997, p.46-50.


3. "Est�tica da Vida" (1921), Obras completas, Rio de Janeiro: INL, 1968, p.620-621. Devemos fazer refer�ncia � obra de Eduardo Jardim de Moraes, A brasilidade modernista: sua dimens�o filos�fica, Rio de Janeiro: Graal, 1978.


4. Op. cit., nota anterior supra, p.43.


5. Pref�cio, Obras completas de Oswald de Andrade, vol. VI, Rio de Janeiro: Civiliza��o Brasileira, p.XXXII.


6. Walter Zanini, Vicente do Rego Monteiro, artista e poeta, S�o Paulo: Marigo, 1998.


7. V�rios, como Mani Oca, ilustrariam L�gendes, croyances et talismans des indiens de l'Amazone, Paris: Tolmer, 1923; adapta��o de P. L Duchartre.


8. Paulo Herkenhoff, "The jungle in Brazilian modern design", The journal of decorative and propaganda art, n.21 (1995), p.239-58.


9. Gianni Vattimo et allii, "Postmodernidad: una sociedad transparente?", En torno a la postmodernidad, Barcelona: Editorial Anthropos, 1991, p.11.


10. Carta de Sandra Brecheret Pellegrino ao autor em 18 de janeiro de 1994


11. Luis Martins, Emiliano di Cavalcanti, São Paulo: Museu de Arte, 1953, p.15.


12. Carta de 15 de novembro de 1923, apud Amaral e Salzstein (op. cit., nota 13 infra, p.145).


13. A artista foi exaustivamente estudada por Aracy Amaral em seus livros: Tarsila, sua obra e seu tempo, 2 vols., São Paulo: Perspectiva, 1975; Tarsila, São Paulo: Finanbrás, 1998 e no catálogo Tarsila anos 20, por Aracy Amaral e Sônia Salzstein, São Paulo: Sesi, 1997. Remetemos ainda ao artigo de Salzstein sobre Tarsila e à introdução do autor ao Núcleo Histórico da XXIV Bienal de São Paulo neste livro.


14. Apud Aracy Amaral, ibid. p.88�89.


15. Utilizamos aqui a quarta edição. Paris: Librairie Floury, 1948, p.50.


16. Vinicius Dantas, no texto "Que negra é esta?", catálogo citado na nota 13 supra, compara extensivamente A negra com as versões de Le mécanicien (1918 e 1920) e faz breve referência a Paysage animé, de Léger. A sensualidade de A negra está no espírito da Composition aux deux femmes (1923) de Léger e a sensual disponibilidade sexual tem seu precedente em A carioca (1882) de Pedro Américo, que causou grande escândalo na época em que foi apresentada na Exposição Geral.


17. "Notes sur la vie plastique actuelle" (1923), Fonctions de la peinture, Paris: Gallimard, 1997, p.62�3.


18. 1923, Ibid., p.84.