(continuaçâo)

O simbólico modelo chileno de vida de uma família de origem hispano-vasco-francesa entrava em crise2. A partida de Matta é um sintoma terminal dessa inquietação. Matta deixa no Chile seu círculo familiar, para regressar a sua origem. O arquiteto Larraín o informa a respeito de um modernismo arquitetônico e plástico, que Matta associa a Le Corbusier. Não é por acaso que, chegando a Paris, começa a trabalhar em seu ateliê.

A oligarquia chilena empreende a montagem de um enclave social e político, assegurada por uma referência que está sempre fora, numa origem suficientemente próxima para que possa resolver sua angústia de filiação. No fim do século, a França fora instituída como referência de origem. No entanto, é sintomático o fato de que em sua tese de graduação Matta exponha os termos de outro conflito. Finalmente, ao racionalismo de Le Corbusier e Gropius, Matta opõe o construtivismo orgânico do corpo feminino, fazendo a analogia da pose com a planta3. Esse ato representa uma rebeldia contra uma arquitetura autopunitiva, da qual Matta manterá distância, por meio de um modelo de desenho que buscará seus antecedentes na relação entre corpo e molde, atribuindo à mobília a função de uma moldura que não é uma negação, mas um suporte de contenção. Na ausência de uma casaṖnem o Chile nem a FrançaṖ, aparece o móvel como a imagem do futuro-casa4. Uma espécie de mobiliarização da corporalidade.

Em 1938, Breton envia, do México, um telegrama à revista Minotaure, recomendando Matta. No número 11, Matta publica seu texto "Mathématique sensibleṖarchitecture du temps". Trata-se de um texto que reproduz a intensidade da intenção de sua tese de graduação de 1932. Se, na tese, a zona de conflito se localizava nos planos de planta, no artigo situa-se na curvatura dos corpos. Mas a mesma ferramenta intervém nas duas zonas: o desenho. Ou seja: o traço que reproduz o diagrama de um combate pelo futuro-casa do corpo, duplicado pelo futuro-corpo da casa: o traço como cicatriz de um movimento5.

Matta leva do Chile apenas a expressão manifesta de uma percepção do mundo natural; deixaṖcomo lastroṖuma percepção do mundo social como um mal-estar que faz parte de sua viagem. Esse mundo social o reprime em três dimensões: familiar, religiosa e política. Essa primeira percepção estará na base de um sintoma antropófago invertido.

Alain Jouffroy, no texto do catálogo da retrospectiva no Centro Georges Pompidou (1985), formula uma hipótese-chave a respeito do tipo de relação que Matta estabelecerá com o Chile, com sua partida. Matta diz que "est chilien" [é chileno]. Ou seja, um artista que "chie les liens"6 [defeca os laços]. Ou seja, que expulsa [defeca] as relações. Mas esta expulsão é uma afirmação de pertinência por anteposição. De tanto expulsar, o que faz é engolir, devorar tudo aquilo que lhe foi negado. Ou melhor: tal assimilação estabelece uma conexão entre o sujeito e a terra, sem que exista mediação das relações sociais. Isso implica a negação do sujeito, numa primeira instância. Porque se alguém confia nas declarações de Matta, há de purificar os trechos ruins da soma de informações que saturam e retocam as representações de si mesmo, sobre sua posição na história da arte. Quando ele fala de suas primeiras morfologias e dos títulos de suas obras dos anos 40, faz referência à negação do sujeito no mesmo instante em que publicamente o afirma. É preciso estabelecer a noção de sujeito que o mantém. Não se trata de negação afirmativa mediante o devorar o outro. Na medida em que existe apenas natureza, não existe Outro, o que resulta ser uma boa robinsoneada. A natureza segundo o Roberto Matta dos primeiros tempos é um suporte de intervenção direta no qual se reconhece como penetrante-exalado7. Assim, o que faz é reproduzir o ímpeto colonizador de sua raça. Sintoma de seu desfalecimento, o artista Matta é a imagem de seu retorno à origem da força penetrante, que deve ir em busca da força perdida. A "genitalidade" de seus propósitos é capaz de exorcizar o fantasma da fraqueza. O Chile é um país cujo território é representado, no mapa, como uma dupla ambigüidade entre rasgadura (fissura) e ereção.





2. "Nasci em meio à diáspora basca do Chile, o que significa dizer que nasci no fim do mundo. Lá, as pessoas não sabem ao certo em que se agarrarem para obter esta consciência a que me referi. Esta sociedade existia apenas dentro de uma sociedade aristocracia basca que vivia recolhido em si mesma." ("El †OestrusË, conversa entre Roberto Matta e Felix Guattari", Revista de estudios públicos, n.44 (dezembro 1991), Santiago, p.287.


3. Ver reproduções em Entretiens morphologiques. . ., p.30“31. Vejo algumas palavras sobre a materialidade gráfica desta construção. Não se trata simplesmente de um discurso didático editorial que procura demonstrar o ajuste perfeito da planta no modelo da pose desenhada em papel. Em vez disso, trata-se do talento gráfico do arquiteto, para quem o papel velino é uma superfície de trabalho cotidiana. O caráter semitransparente do papel velino permite associações literais com o esbatimento na pintura.

Em carta recente de Luis Pérez Oramas para Paulo Herkenhoff, sobre a estrutura de nosso trabalho conjunto de curadoria desta seção do Núcleo Histórico, ele assinalou a insistência de Matta sobre a importância de seus contatos iniciais com Le Corbusier. Em uma viagem recente a Caracas, Matta foi levado por Luis Pérez Oramas para "identificar" desenhos de sua autoria na coleção de Patricia Phelps de Cisneros. Uma descoberta agradável e surpreendente de desenhos feitos em 1938 e por volta desse período, especialmente os que se referem à morte de García Lorca. Matta associou-os aos desenhos de sua tese de graduação e comentou detalhamente sobre como Le Corbusier ficou perturbado com seus desenhos de plantas inspirados em desenhos de nus femininos.


4. "Ce serait un mobilier qui dechargait le corps de tout son passé, angle droit de fauteuil, qui delaissant lËorigine du style de ses prédécesseurs, sËouvrirait au coude, la nuque, époussant des mouvements infinis selon lËorgane rendre conscient el lËintensité de vie", Matta, Entretiens morphologiques. . ., p.35.


5. "O traço é o que resta do processo de recalcamento. Se consideramos o processo de recalcamento como um movimento para delimitar fronteiras, o qual instaura uma geografia do suportável, seria preciso talvez pensar esses traços como postos de fronteira, ou seja, como algo que lembraria sempre a operação de um contorno, de uma delimitação", Edson Luiz André de Souza, "Tempo e repetição: intersecções entre a poesia e a psicanálise", Cem anos da psicanálise, Porto Alegre: Artes Médicas, 1996, p.281.


6. "Poderíamos pensar esse trabalho de rima como uma conseqüência direta do processo de recalcamento. Assim, a rima seria inscrita numa certa "formação de compromisso", pois ocuparia essa função de dizer pela metade a verdade do recalcado. Ela revela e esconde ao mesmo tempo. Situa-se num lugar que exige uma leitura e mesmo uma interpretação. A rima funcionaria, por conseguinte, numa lógica do recalque", Edson Luz André de Souza, op. cit. , p.284.


7. É preciso estabelecer uma relação entre esta atitude intelectual de Matta, a poesia chilena e "o cheiro úmido dos sulcos", Gabriela Mistral.