Maria Martins: a mulher perdeu sua sombra
"[. . .] não era nada menos que o Amazonas, que cantava nas suas obras, que tive a felicidade de tanto admirar, em Nova York, em 1943. Cantava com todas as suas vozes imemoriais a paixão do homem, do nascimento até a morte, tal como souberam condensá-la em símbolos mais envolventes que todos os outros [. . .] Maria soube captar, como ninguém, na fonte primitiva, de onde ela emana, asas e flores, sem nada dever à escultura do passado ou do presente [. . .]"2. O texto, de André Breton para uma exposição da artista em Nova York, é emblemático do encantamento que a obra de Maria produz dentro de uma estética surrealista dos anos 40, nos Estados Unidos.
A produção de Maria Martins, a partir de 1942, marca justamente a diferença cultural da artista em relação a seus colegas europeus e norte-americanos, sublinhada em títulos pessoais, como é o caso da obra Não te esqueças nunca que eu venho dos trópicos, ou apresentando ícones da tradição popular narrativa e religiosa do país, em obras como Yemanjá, Boiuna, Cobra grande e Yara, expostas na mostra Amazonia, que a artista realizou na galeria Valentine, em 1943. As obras dessa fase tecem a imagem de uma "brasilidade" cênica. Materializam a atitude nostálgica de uma exuberância e sensualidade primitivas, que alimentam o imaginário europeu. Carregam, desde então, a marca da inquietude trazida pela somatória entre o Brasil de origem, país vivido de fato, e o Brasil primitivo e imaginário, repositório de lendas amazônicas e imagens de uma natureza selvagem, simbólica do desejo. De fato, a liberdade com que mergulha e emerge de universos estéticos e culturais diversos, constantemente carimbados com uma marca narrativa extremamente pessoal, intuitiva e emocional, faz com que Maria Martins seja desde o início identificada com o surrealismo. Maria Martins participa, a partir dos anos 40, das principais exposições ligadas ao movimento, como a grande mostra Le surréalisme, organizada por Breton e realizada na Galerie Maeght, em Paris, em 1947, e é incluída em publicações de autoria dele.3 Nos Estados Unidos, as vanguardas européia e norte-americana, alimentadas pelos projetos abstratos e surrealistas, convivem com naturalidade. Em 1942, Marcel Duchamp e André Breton, juntos, organizam a exposição First papers of surrealism [Primeiros papéis do surrealismo], em Nova York, ao mesmo tempo que freqüentam a recém-inaugurada galeria de Peggy Guggenheim, Art of this Century, onde, pela primeira vez, são expostas obras do norte-americano que, anos mais tarde, seria um dos pivôs do expressionismo abstrato: Jackson Pollock. Um dos exemplos dessa convivência de linguagens artísticas toma corpo na própria temporada de 1943, na galeria Valentine, quando Amazonia, de Maria Martins, é exposta juntamente com pinturas de Piet Mondrian. Ao lado das narrativas e dramáticas Cobra grande, Yemanjá e Boiuna, o artista holandês, que passa a viver em Nova York a partir de 1940, exibe telas da série New York, utilizando apenas cores primárias e formas geométricas, transformadas em pulsações de luz, cor e movimento.4 2. Retirado do texto de apresentação que Breton escreveu para o catálogo da exposição de Maria na galeria Julien Lévy, em Nova York, em 1947.
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