Kuitca e topologias canibais


Para além do mundo das fantasias monumentais·dos seres devoradores nos inquietantes e catastróficos jardins de Bormazo às prisões de Piranesi (quase parâmetro para a arquitetura fascista e a arquitetura soviética neste século)·a arte de Guillermo Kuitca pertence a uma ordem de arquiteturas canibais. Afastemos Bormazo. O canibalismo não é uma dieta. A Tropicália de Hélio Oiticica1 ou uma casa serrada de Gordon Matta-Clark são arquiteturas que apontam para a situação fundiária e a marginalidade social urbana·índices de um certo canibalismo econômico. Na pintura de Kuitca, em seu vazio, algumas arquiteturas para as massas humanas são como as tumbas egípcias, cujas pedras devoraram os corpos·cenotáfio·e o coliseu romano. Estádios, teatros, hospitais são plantas inabitadas, como se os seres humanos tivessem sido consumidos pela lógica de regulação do lugar do corpo no espaço social. É uma estranha espécie de antecipação topológica do panóptico. Algumas pinturas revelam o interesse de Kuitca pela arquitetura panóptica2, que devora espaços e reverte a alma em prisão do corpo3. Outra arquitetura agônica de Kuitca são os planos da casa desenhados com espinhos: o desejo, a casa com aids, que está entre as epidemias que devoram a espécie. As casas de Kuitca não são antropomórficas como na pintura de Munch. Despregadas da idéia de corpo construído, a melancolia pareceria contentar-se com uma existência em representação gráfica da planta arquitetônica. A planta de uma casa com dois quartos seria a metáfora da unidade familiar·e não é ali o lugar da cena freudiana de totem e tabu? O teatro é devorador, não por sua crueldade, capaz de liberar mesmo os impulsos de canibalismo, como propôs Antonin Artaud4. Se o "teatro da crueldade" de Artaud não seria representação, mas a vida num nível em que esta seria irrepresentável, como diz Derrida5, então, a planta da casa na obra de Kuitca já não poderia ser a mera projeção do edifício, mas a presentificação antecipada da experiência a ser já ali vivida. Uma pintura de Kuitca também pode ser a própria cenografia de seu método de apropriação das artes. Borges e Bacon. Bausch ou Beatles. As escadarias do pavor do Encouraçado Potemkin, de Eisenstein, parecem desaguar sobre El mar dulce, portal para a família de imigrantes judeus. O nome da cidade é deixado para trás e traz na memória do terror, nesta cartografia de incertezas, o índice do forno crematório. É impossível esquecer, insisto. A arquitetura canibal é, então, monumento da barbárie. Marienplatz. Seria realmente necessário definir a metáfora mais exata de guerra como canibalismo? Seriam as barricadas da pintura de Meissonier, enquanto figura emblemática de todas as repressões: the very trope of the interdito?6 Ou seria o quarto solitário onde uma mãe espera pelo filho voltar da guerra, como numa pintura de Kuitca? Mapas·representações do mundo e instrumentos econômicos e bélicos·dizendo o nome já não dizem o lugar. As fronteiras se dissolvem, informações da trajetória se dissipam. Os passos do tango até p





1. "É a meu ver a obra mais antropofágica da arte brasileira", Hélio Oiticica, "4 de março de 1968", Aspiro ao grande labirinto, Rio de Janeiro: Rocco, 1986.


2. "Associo minha obra com a visão panóptica. Um olhar que tudo vê. Em qualquer de minhas pinturas, construo o espectador panóptico mesmo sem usar um plano panóptico. O mesmo acontece com as pinturas-cenário e as plantas de casa: tudo é exposto ao olhar do espectador", diz o artista.


3. Michel Foucault, Vigiar e punir, Petrópolis: Vozes, 1977.


4. Antonin Artaud reivindica em seus manifestos do Teatro da Crueldade que o teatro deveria propiciar "ao espectador com uma precipitação veraz de sonhos, no quase seu gosto pelo crime, suas obsessões eróticas, sua selvageria, suas fantasias, seu senso utopista da vida e das coisas, mesmo o canibalismo, jorra num nível que não é falso nem ilusório, mas interno [. . .] o teatro, como os sonhos, é sangrento e desumano", apud Susan Sontag (ed.), e Helen Weaver (trad.), Selected writings of Antonin Artaud, Nova York: Farrar, Strauss e Giroux, 1976, p.244“245.


5. A escritura e a diferença, tradução de Maria Beatriz M. N. da Silva, São Paulo: Perspectiva, 2¼ edição, 1995, p.153.


6. Conforme a análise de Régis Michel neste livro, p.120“133.