Retrato da f�mea do louva-a-deus como hero�na sadiana

Didier Ottinger



"O canibalismo � feminino."
-Andr� Masson


"Um obcecado!", assim Andr� Breton julga Georges Bataille depois de t�-lo conhecido no caf� Le Cyrano, em 1926. Esse dia, teria Bataille falado de Sade, cuja obra acabara de descobrir e cuja intemperan�a parecia se esfor�ar por atualizar.

Seu interesse pelo "Divino marqu�s" nada tem de original. Dele partilha a maioria dos primeiros adeptos do surrealismo. Litt�rature, ainda dada�sta, no n�mero de 18 de mar�o de 1921 coloca Sade entre as refer�ncias maiores dos artistas e poetas reunidos pela revista em torno de Andr� Breton. E, em 1923, a revista que estabelece hierarquias e fontes para os futuros surrealistas encontra somente Lautr�amont para colocar ao lado de Sade no topo de seu pante�o. Na �poca do surrealismo militante, correndo o risco de graves mal-entendidos com os simpatizantes comunistas de Clart�, �luard se esfor�a por demonstrar "a intelig�ncia revolucion�ria" do "divino marqu�s". No n�mero 8 de La r�volution surr�aliste, �luard reincide, publicando desta vez um "D.A.F. de Sade, escritor fant�stico e revolucion�rio" que faz do autor de Justine o ap�stolo da justi�a e da liberdade. Na �poca do engajamento comunista dos surrealistas, o Sade revolucion�rio teve preced�ncia sobre o Sade imoralista.

N�o teria o revolucion�rio da "se��o de espadas" nenhum valor de uso er�tico para os surrealistas?

� �poca em que o "obcecado" Georges Bataille transfere a maior parte de seus rendimentos de bibliotec�rio �s donas de bordel, Andr� Breton, na "pesquisa da sexualidade" publicada no n�mero 11 de La R�volution surr�aliste, de 15 de mar�o de 1928, condena a homossexualidade, assimilada a uma pervers�o sexual, prega um amor �nico, eletivo e, por fim, afirma n�o ser nem "s�dico nem masoquista".

Em 1928, duas obras dizem bastante daquilo que separa as concep�es que Bataille e Breton fazem do amor. Sob o pseud�nimo de Lord Auch, Georges Bataille publica Histoire de l'�il [Hist�ria do olho], que Michel Leiris mais tarde qualificar� de "del�rio sexual, (de) �mpeto blasfemat�rio e (de) furor mort�fero".1 O pr�prio Bataille presta contas dos sentimentos que lhe inspiram o livro: "[. . .] eu gostava s� do que � classificado de 'sujo'. N�o me satisfazia nem mesmo a intemperan�a habitual; ali�s, ao contr�rio, porque ela suja unicamente a intemperan�a e deixa intacto, de uma maneira ou de outra, algo de elevado e perfeitamente puro". Algo t�o "perfeitamente puro" quanto, por exemplo, o amor descrito por Andr� Breton no romance Nadja, publicado esse mesmo ano de 1928. Nadja � a narrativa da paix�o suscitada por um ser de cuja realidade material acabamos por duvidar. Um g�nio, uma fada, uma criatura imaterial inspira a Breton uma paix�o cuja espiritualidade a liga � mais alta tradi��o do amor cort�s.

Da musa Nadja � perversa Marcelle (a hero�na de Histoire de l'�il) se assinala o distanciamento entre uma concep��o cavalheiresca e idealista do amor e uma outra, vinculada aos impulsos mais deliberadamente "baixos", que se avizinham da morte; um amor indissoci�vel do erotismo aprendido nas li�es sadianas.

A primeira edi��o, de 1928, de Histoire de l'�il era enriquecida de oito litografias do pintor Andr� Masson.

Em 1924, Michel Leiris introduzira Bataille no c�rculo dos freq�entadores da rua Blomet, onde se encontrava o ateli� do pintor. O interesse comum por Nietzsche e Dostoi�vski os aproxima no mesmo instante. Bem depressa, Sade incorpora-se �s suas refer�ncias comuns. Em 1928, Masson empreende a ilustra��o da Justine de Sade.

Sua comunh�o no altar profanat�rio do sadismo ocorre em 1931, quando Masson grava uma s�rie de pranchas para L'anus solaire [O �nus solar] de Bataille. Em 1936, � Bataille que comp�e um texto para acompanhar as gravuras de Sacrifices [Sacrif�cios].

O pintor e o escritor jamais estiveram t�o pr�ximos. A partir de 1934, Bataille faz diversas viagens a Tossa de Mar, na Espanha, onde se instalara Masson. � l� que concebem a ef�gie do personagem ac�falo, manifesto visual de uma revista posta sob a dupla tutela de Nietzsche e de Sade. Bataille coloca o texto fundador da revista sob um exergo sadiano. O primeiro n�mero de Ac�phale publica um texto de Pierre Klossowski consagrado ao divino Marqu�s.

Seria o personagem ac�falo concebido por Masson o emblema definitivo do sadismo do pintor? H� outra figura que, por suas resson�ncias simb�licas, por sua onom�stica, condensa as refer�ncias sadianas de que partilham Andr� Masson e Georges Bataille. Essa figura, l�brica e terrificante, � a do louva-a-deus. A f�mea do louva-a-deus � o s�mbolo perfeito da er�tica sadiana. Desde sua instala��o em Tossa de Mar, em 1934, Masson se interessa pelo mundo dos insetos. Evocando esse per�odo, recorda: "Naturalmente, esses insetos s�o humanizados, antropomorfizados. Eu criava louva-a-deus, ficava olhando o que acontecia quando p�nhamos v�rios deles dentro de uma caixa para ver o que ali sobraria. O efeito � extraordin�rio. Uma vez, por exemplo, na caixa [. . .] havia um louva-a-deus morto, impressionante como uma est�tua jacente; ao lado, restos. Sab�amos quem havia sido vitorioso. Era um pouco cruel, confesso, mas a Espanha me incitava a isso". Em breve, os louva-a-deus invadem os quadros de Masson. A lembran�a deles o obseda mesmo bem depois de sua estada na Espanha. Durante os primeiros anos da guerra, o inseto lhe inspira desenhos e esculturas. No transcurso dos anos trinta, Masson n�o est� sozinho no interesse pelo louva-a-deus. Uma carta que endere�a a Bataille, em novembro de 1937, nos faz saber que ele destina a Roger Caillois alguns de seus desenhos de louva-a-deus: "Voc� me prestaria um servi�o se bem se dispusesse a avisar Caillois de que os desenhos de louva-a-deus se encontram em suas m�os".

Em sua quinta apari��o, em maio de 1934, a revista Minotaure traz efetivamente um estudo de Roger Caillois: "La mante religieuse, de la biologie � la psychanalyse" [O louva-a-deus, da biologia � psican�lise], em que o autor fornece aos futuros exegetas do animal as chaves de sua interpreta��o sadiana. Um ano mais tarde, o artigo desenvolvido constituir� um cap�tulo da obra de Caillois Le mythe et l'homme [O mito e o homem]. Se lhe aplic�ssemos as aprecia�es t�picas de Andr� Breton, o louva-a-deus pertenceria sem d�vida alguma � categoria dos "obcecados". Caillois nos ensina que o inseto � um matador apenas por lubricidade. Cita o entom�logo Raphael Dubois, de acordo com quem um acrid�deo, se decapitado, executa melhor e mais demoradamente os movimentos reflexos e espasm�dicos pr�prios da copula. Os bi�logos F. Goltz e H. Busquet, a partir dessa constata��o, se indagam se "a f�mea do louva-a-deus, ao decapitar o macho antes do acasalamento, n�o teria por finalidade obter, mediante a abla��o dos centros inibidores do c�rebro, execu��o mais prolongada e melhor dos movimentos espasm�dicos do coito, de tal forma que, em �ltima an�lise, fosse o pr�prio princ�pio do prazer que lhe ordenasse a morte do amante".2

Com o louva-a-deus, aparece uma figura que condensa erotismo e morte, �xtase e sacrif�cio, e que Bataille se p�e a renovar esses valores, a partir de leituras de Nietzsche e de Sade, interpretadas na perspectiva dos estudos socioantropol�gicos de Marcel Mauss. O louva-a-deus, segundo o mito ao qual o associa a tribo africana dos khoi-khois, est� ligado �s figuras dos imolados mitol�gicos de que Masson, em 1933, acabara de gravar as ef�gies. Para os khoi-khois, o louva-a-deus associado � divindade superior de seu pante�o foi devorado e vomitado completamente vivo por Kwai-Hemm, o deus devorador. Tal mitologia remete o mant�deo aos "deuses que morrem", a Orfeus, Os�ris, Jesus, Mitras, cuja "consumi��o" real ou simb�lica assegura renova��o e salva��o.

No texto que escreveu para acompanhar as gravuras de Sacrifices, Bataille associa a morte do Deus ao �xtase amoroso. "A destrui��o r�i fundo e assim purifica a pr�pria autoridade suprema. A pureza imperativa do tempo se op�e a Deus, cujo esqueleto se dissimula sob roupagens douradas, sob uma tiara e sob uma m�scara [. . .] Mas no amor divino se desvenda infinitamente o clar�o enregelante de um esqueleto s�dico. A revolta-a face descomposta pelo �xtase amoroso-, a Deus arranca a m�scara de ingenuidade e assim a opress�o desaba no estr�pito do tempo".3

O canibalismo amoroso da f�mea do louva-a-deus pertence de pleno direito � fantasm�tica sadiana. Para o mundo erudito, informa-nos Caillois, "a palavra espectro designa ainda hoje um g�nero de ort�pteros t�o pr�ximo dos louva-a-deus que o leigo ficaria em v�o � procura do princ�pio distintivo".4 Os espectros pertencem � mitologia dos antigos gregos. S�o esses espectros enviados por H�cate, a divindade infernal mais sinistra. Caillois lembra as f�bulas ligadas a esses espectros que "gostam muito do amor, por�m ainda mais da carne humana; (que) pela voluptuosidade aliciam aqueles a quem querem devorar".5

O amor gourmand pr�prio desses espectros e da f�mea do louva-a-deus nada tem de extraordin�rio. Novalis escreve que "o desejo sexual talvez n�o seja mais que disfar�ado apetite por carne humana".6 Caillois, por outro lado, informa que a "mordida de amor" j� era "conhecida pelos poetas antigos e codificada pelos erot�logos orientais".7 Apenas Sade e alguns poucos japoneses sequiosos de carne holandesa transp�em a fronteira que separa a "mordida de amor" da devora��o bul�mica. O psic�logo Kierman afirma que conv�m considerar o sadismo "como a forma humana anormal de fen�menos que podemos encontrar no come�o da vida animal, como a sobreviv�ncia ou o retorno at�vico de um canibalismo sexual primitivo".8 A literatura de Sade apresenta algumas figuras de f�meas de louva-a-deus. Lady Clairwil, em La nouvelle Justine [A nova Justina], n�o hesita em praticar o canibalismo com seus amantes.

O canibalismo da f�mea do louva-a-deus pertence, como numerosas caracter�sticas do animal, ao registro dos fen�menos transgressivos cujas resson�ncias sociais Georges Bataille estuda. Para ele, o canibalismo constitui um dos sinais mais eloq�entes de comunh�o com uma ordem de for�as superiores terr�veis e inebriantes. Ritualizado, o canibalismo � para Bataille a marca de uma sociedade que manifesta, ao mesmo tempo, assentimento e desprezo pela morte. As sociedades pr�-colombianas lhe parecem exprimir tais valores.

"Os n�meros citados variam: n�o obstante, pode-se admitir que o montante anual de v�timas atingia, por baixo, v�rios milhares na cidade do M�xico. O sacerdote ordenava que um homem fosse sustentado de barriga para cima, arqueados os rins sobre uma esp�cie de baliza grande, e lhe abria o tronco vibrando-lhe violentamente um golpe de faca de pedra refulgente. Os ossos eram cortados, o cora��o agarrado plenamente com as m�os pela abertura inundada de sangue e arrancado violentamente com uma habilidade e uma presteza tais que essa massa sangrenta continuava a palpitar organicamente durante alguns segundos por cima da brasa rubra: em seguida, o cad�ver abandonado despencava pesadamente at� o p� da escadaria. Por fim, ca�da a noite, esfolados, esquartejados e cozidos todos os cad�veres, os sacerdotes os vinham comer."9 Bataille n�o se interessa unicamente pelas formas coletivas e ritualizadas da antropofagia. Para ele, o autocanibalismo � igualmente express�o de uma ambi��o, de uma religiosidade superior. O del�rio da automutila��o est� sempre associado a um desejo de eleva��o levado ao paroxismo e, muitas vezes, se confunde com a obstina��o de contemplar o sol diretamente. "J� se expressou mitologicamente o sol pela figura de um homem que se degolava a si mesmo [. . .]"10 Bataille encontra um equivalente dessa automutila��o no relato concernente a Gaston F., a que se referem os annales m�dico-psicol�gicos: "Na manh� de 11 de dezembro, passeava ele pelo bulevar de M�nilmontant. Ao chegar � altura do P�re Lachaise, p�s-se a fitar fixamente o sol e, tendo recebido de seus raios a ordem imperiosa de arrancar um dos pr�prios dedos, sem hesitar, sem se ressentir de dor alguma, prendeu entre os dentes o indicador esquerdo, seccionou sucessivamente a pele, os tend�es flexores e os extensores, os ligamentos articulares na altura da articula��o falangeal, torceu com a m�o direita a extremidade do indicador esquerdo assim dilacerado e o arrancou completamente [. . .]"11

Para Andr� Masson, o estudo do louva-a-deus permite uma transfer�ncia de valores rituais e sociais revelados na �poca em que colaborou com Bataille na revista Documents. Interrogado sobre seu interesse pelo canibalismo da f�mea do louva-a-deus, responde o pintor: "Para dizer a verdade, eu estava bastante informado sobre o canibalismo por n�o poucos amigos que fizeram viagens de explora��o � �frica. Entre outros, meu amigo Michel Leiris, que fez uma viagem de dois anos e me dizia que as tribos canibais � que eram as mais civilizadas".12

� impens�vel explorar a inquietude nascida da associa��o do erotismo com a figura do louva-a-deus sem evocar o arqu�tipo desse terror que o fantasma da vagina dentata constitui. Essa vagina dentada cuja mordida provoca a castra��o v� seu simbolismo juntar-se ao do louva-a-deus. "� significativo que, tanto na Proven�a quanto na �frica austral, o louva-a-deus seja associado aos dentes de modo t�o particular", comenta Caillois13.

Ao associar o erotismo � morte e � viol�ncia, a f�mea do louva-a-deus se dota do poder de fazer vir � tona as figuras de nossos medos e de nossas fobias. Ao reduzir Sade unicamente � sua dimens�o pol�tica, Andr� Breton privou o surrealismo dessas figuras de ang�stia, desse imagin�rio de terror e de tremores m�sticos. Em 1930, Bataille lidera a primeira cis�o s�ria no seio do grupo surrealista. Sua revista Document publica o panfleto Un cadavre [Um cad�ver], em que Breton se v�, entre outras coisas, taxado de "le�o capado". No quadro da pol�mica que acaba de iniciar abertamente com Breton, Bataille redige La valeur d'usage de D.A.F. de Sade [O valor do uso do D.A.F. de Sade], que leva o debate para o ponto mais crucial de suas diverg�ncias: Sade e a interpreta��o que conv�m dar � sua obra. Evocando a leitura que os surrealistas haviam feito de Sade, escreve Bataille: "Hoje parece conveniente colocar seus escritos (e com eles o personagem do autor) acima de tudo (de quase tudo) que seja poss�vel lhes opor: mas n�o se trata de lhes ceder o m�nimo espa�o, tanto na vida privada quanto na vida social, tanto na teoria quanto na pr�tica".14 Nadja contra Marcelle, os bord�is contra os caf�s liter�rios, o uso existencial que conv�m fazer das li�es de Sade, eis os termos do contencioso que op�e Bataille a Breton.

Andr� Masson, refugiado em Marselha durante a guerra, tentou fazer com que os membros do surrealismo no ex�lio partilhassem de sua fascina��o pela cruel f�mea do louva-a-deus. Nessa �poca, todos passavam o tempo a "capturar tantos louva-a-deus quantos desejassem, pelo espet�culo que oferecem de rivalidade e de amor [. . .]"15 A hist�ria n�o nos diz se Breton, com esse espet�culo, obtinha tanto prazer quanto com aquele do elegante bal� nupcial das borboletas.

Didier Ottinger
Traduzido do franc�s por Claudio Frederico da Silva Ramos







1. M.Leiris, "Du temps de Lord Auch", L'Arc, n.44.

2. R.Caillois, Le mythe et l'homme, Cole��o Essais, 1� ed. 1938, Paris: Gallimard, 1996, p.54-55.

3. G.Bataille, Sacrifices, �uvres compl�tes, vol. 1, p.95.

4. Caillois, Le mythe et le monde, p.63.

5. Ibid., p.62.

6. Citado em Caillois, Le mythe et l'homme, p.58.

7. Ibidem, p.59.

8. Ibidem, p.56.

9. G.Bataille, "L'Am�rique disparue", Cahier de la r�publique des lettres, 1928, �uvres compl�tes, p.157.

10. G.Bataille, "Soleil pourri", Documents n.3, p.173-174; �uvres compl�tes, p.232.

11. G.Bataille, "La mutilation sacrificielle et l'oreille de Vincent van Gogh", Documents, n.8, 1930, p.10-20; �uvres compl�tes, p.258.

12. A.Masson, "Discussion avec Jean-Claude Clebert", Mythologie d'Andr� Masson, Genebra: Pierre Caillet, 1971, p.46.

13. Caillois, Le mythe et l'homme, p.46.

14. G.Bataille, De la valeur d'usage de D.A.F. de Sade, in �uvres compl�tes, vol. 2, p.56.

15. A.Breton, La clef des champs.