As dimensões antropofágicas do dadá e do surrealismo

Dawn Ades


Terá sido por conhecimento da revista dadaísta Cannibale, editada por Francis Picabia, que os dissidentes da vanguarda brasileira publicaram o "Manifesto antropófago" e a revista "Antropofagia", na década de 20? Seria possível, mas pouco provável e de qualquer forma desnecessário para explicar a escolha dessas palavras que tão adequadamente denotam a complexidade das condições culturais neo-coloniais no Brasil da época, e sua história. É interessante, entretanto, refletir sobre os motivos que colocaram a antropofagia igualmente em evidência no ambiente revolto do dadaísmo, em que é também expressiva, mas por razões diferentes.

O dadaísmo floresceu graças às pequenas revistas que proliferaram nas décadas de 10 e 20 e numerosas publicações, algumas das quais não passaram da primeira edição, foram lançadas em nome do movimento. Estas revistas, juntamente com os saraus "literários" e exposições abertos ao público, constituem sua verdadeira vida, sua postura antiarte e antiliteratura. Em abril de 1920, quando Picabia produziu a primeira edição de Cannibale, seu peripatético 391 tinha mais de três anos de idade. O artista havia publicado os quatro primeiros números deste periódico em Barcelona, na primavera de 1917, antes de se mudar para Nova York, onde produziu as três edições seguintes. Essa época coincidiu com o escândalo causado pela obra Fountain [Fonte] de seu grande amigo Marcel Duchamp, que perdeu seu pequeno periódico The blind man para o 391 de Picabia num jogo de xadrez. Sempre controverso e inovador, o 391 foi um condutor valioso para as idéias de Duchamp, do ready-made, e para os desenhos e pinturas maquinais secos de conotação sexual criados por Duchamp e Picabia. Não havia elo significativo ligando o periódico ao movimento dadaísta nascido em Zurique, em 1916, até 1918, quando Picabia visitou a Suíça, onde conheceu o poeta romeno Tristan Tzara. As publicações Dada 4/5, editadas por Tzara, e 391 (n.8) dão conta do estimulante relacionamento de ambos. A edição da 391 traz um ensaio interessante, virtualmente automático, entitulado "Proses", metade do qual era impresso de cabeça para baixo na folha para mostrar as posições dos dois homens no momento em que o escreviam, em lados opostos de uma mesa de hotel, enquanto a Dada 4/5 exibe na capa a obra Rèveil matin, que Picabia criou ao imprimir sobre papel as partes de um relógio desmontado, mergulhadas em tinta. Picabia retornou a Paris onde, juntamente com Tzara, que chegou em janeiro de 1920, associou-se a um grupo de jovens poetas parisienses cuja revista Littérature havia anunciado, em 1919, seu apoio ao dadá. Picabia já se tornara conhecido por suas contribuições aos Salões de Primavera e Outono, nos quais habitualmente causava escândalo com trabalhos que testavam a tolerância dos representantes oficiais da arte moderna. O auge dessa trajetória foi o Salão dos Independentes de 1922 para o qual Picabia enviou três obras: Dance de Saint-Guy [Dança de Saint-Guy], The merry widow [A viúva alegre] e The straw hat [O chapéu de palha]. Foram recusadas Straw hat, por conter uma inscrição ("m. . . pour celui qui regarde")1 que sugeria obscenidade, e Merry widow por conter uma fotografia, sendo que os Independentes não aceitavam fotos. Assim, ironicamente seu único trabalho exposto, Dance de Saint-Guy, era o mais esteticamente provocante de todos: uma moldura de quadro, vazia e amarrada com barbante. Ao que parece, originalmente Picabia pretendera criar uma "instalação viva" com camundongos brancos-imagine-se uma gaiola labiríntica funcionando como metáfora insolente para o gosto repetitivo e "behaviorista" do "amante das artes".

Picabia tornou-se o mais conhecido dos artistas dadaístas parisienses e, juntamente com Tzara e Breton, dirigiu as atividades do Movimento em 1920 e na primavera de 1921. A revista Cannibale, lançada em abril de 1920, havia sido criada como um periódico internacional com a missão de unificar todas as suas diferentes tendências: "Publicação mensal sob a direção de Francis Picabia com a colaboração de todos os dadaístas do mundo". A Cannibale era visualmente menos chamativa que a 391, embora utilizasse uma variedade de tipos e layouts conflitantes. Com maior número de páginas que a 391·20, enquanto a 391 tinha no máximo oito·, trazia não apenas dadaístas fundamentais como também figuras marginais como Cocteau. A revista durou apenas dois números, e a edição de nª 13 da 391 comemorou o desaparecimento daquela publicação com a seguinte nota: "Realmente é impossível para mim produzir a CANNIBALE regularmente, ela é muito burra. Espero que desta vez vocês aceitem a 391". As notáveis colaborações para a Cannibale incluíam o "Tableau dada" de Picabia, um quadro sobre o qual foram acrescentados ready-mades que existem apenas na revista e mostram um macaquinho de brinquedo segurando seu rabo à guisa de um pincel fálico, fixo sobre uma base e rodeado pelos "títulos" Portrait of Cézanne, Portrait of Renoir e Portrait of Rembrandt: natures mortes [Retrato de Cézanne, Retrato de Renoir e Retrato de Rembrandt: naturezas mortas]; o Tzank cheque de Duchamp, um cheque meticulosamente desenhado à mão e preenchido em nome de seu dentista, um tipo de ready-made ao contrário; e o poema Suicide [Suicídio], de Aragon, que consistia apenas das letras do alfabeto.

Como tentativa de consumir inteiramente o dadá, o título da Cannibale era apropriado, embora incitasse outras reflexões sobre seus significados no contexto do dadá. É possível que as conotações primitivas de "canibal" fossem uma referência irônica tanto às reivindicações dos futuristas que se pretendiam "primitivos de uma nova sensibilidade", como às pinturas africanizadas e pré-cubistas de Picasso. É claro que até certo ponto o dadá teve participação na vertente primitivista do modernismo, particularmente quando podia servir à utilização polêmica contra sua própria civilização falida. Entretanto, o dadá se dizia parte da vanguarda modernista; ("Dadá não é moderno", insistia). Seu senso da inadequação das "escolas de idéias formais" como tais, e para seus propósitos, revela um dos impulsos subjacentes ao dadá: o de restabelecer uma imediação para a arte, uma relação direta com a vida. O dadaísta deveria ser tanto quanto possível o oposto dos "homens do espírito" que, segundo Richard Huelsenbeck, "fixavam-se nas cidades, pintavam seus pequenos quadros, produziam mecanicamente seus versos, e em sua estrutura humana [. . .] eram irremediavelmente deformados, com musculatura fraca, desinteressados das coisas do cotidiano, inimigos da propaganda, inimigos da rua, do logro, das grandes transações que todos os dias ameaçavam milhares de vidas. Da própria vida. Mas o dadaísta ama a vida [. . .]"2. A situação extrema da Berlim devastada pela guerra forneceu as cores para o texto de Huelsenbeck, seu ataque contra o "modo da arte pela arte" que prevalecia no dadá de Zurique, o qual "não logrou prosseguir no caminho do abstrato, que em última análise leva da superfície do quadro à realidade da forma postal"3, e finalmente sua declaração que na Alemanha "o dadaísmo tornou-se político, auferiu as conseqüências máximas de sua posição e renunciou totalmente à arte".4 Em Paris, o dadá trabalhou sua rudeza e agressividade num nível mais individual do que político·sob o signo da anarquia·, mas também aí a questão era de vida, e não de arte. Assim, talvez Picabia·cujas pequenas revistas eram cheias de anedotas, aforismos e mexericos, e cujas produções visuais incorporavam palavras, fotos, objetos comuns e, ao menos na teoria se não na prática, animais vivos·, pensasse o dadaísta como sendo um canibal no sentido que seu material era a vida, e não a arte.

Entretanto, a reação de Picabia, como também a de Duchamp, aos debates sobre "arte e vida" não era destituída de ironia, a exemplo de suas propostas de usar camundongos brancos verdadeiros ou um macaco vivo (no Tableau dada) em suas "obras de arte". Em Tableau dada o artista acena sombriamente com a extensão lógica dos "materiais vivos" ao uso de seres humanos, brincando com a expressão francesa nature morte, ou seja, "natureza morta", dando uma nova e comicamente sinistra direção ao conceito de "busto retrato".

A ambivalência do dadá com relação à vanguarda da época pode ser muito facilmente incluída no conceito geral de antiarte. Um de seus principais modos de oposição era a paródia, o canibalismo cultural por excelência. Assim sendo, as pretensões da vanguarda à novidade e à originalidade eram impiedosamente imitadas. O poema "simultaneísta" (seja dos Futuristas ou do proponente francês Henri Barzun), por exemplo, foi apresentado em Zurique na forma de três relaxantes canções populares recitadas ou cantadas simultaneamente em alemão, francês e inglês, e intercaladas com sinos e exclamações sem sentido, com o intuito de criar uma grande confusão de sons, em vez do poema moderno denso, dinâmico e de multi-significados. A própria idéia de abstração é posicionada de modo ambivalente no dadá. A despeito de seu ceticismo quanto à reivindicação de uma "nova linguagem" publicada pelos proponentes da abstração, Kandinsky e Mondrian, os dadaístas jogavam com a abstração de um modo mais radical do que aquele reconhecido por Huelsenbeck. Dois exemplos são "Composição", hoje de paradeiro desconhecido, na qual Marcel Janco reuniu um estranha amálgama de arames e objetos, possivelmente com a intenção de fazer paródia, e a primeira escultura abstrata "soft", que Arp produziu a quatro mãos com sua companheira Sophie Taueber.






1. "m. . . para o observador" [N. do T.].

2. Richard Huelsenbeck, "En avant dada: a history of dadaism" (1920), Robert Motherwell, Dada painters and poets, Nova York, 1951, p.28.

3. Ibid., p.37.

4. Idem.