Por um estado de arte: a atualidade de Suely Rolnik


S�o Paulo, domingo, 15 de maio de 19941. Deitada no ch�o, olhos vendados, alvoro�o de corpos an�nimos agitando-se em torno de mim; n�o sei o que pode vir a se passar. Perda total de refer�ncias, apreens�o, desassossego. Estou entregue. Peda�os de corpos sem imagem destacam-se, ganham autonomia e come�am a agir sobre mim: bocas an�nimas abrigam carret�is de m�quina de costura, cujas linhas lambuzadas de saliva s�o ruidosamente desenroladas por m�os igualmente an�nimas, para em seguida deposit�-las sobre meu corpo. Coberta pouco a pouco dos p�s � cabe�a por um emaranhado de linhas, composi��o improvisada de bocas e m�os que me cercam, vou perdendo o medo de diluir a imagem de meu corpo, diluir meu rosto, minha forma, me diluir: come�o a ser este emaranhado-baba. O som dos carret�is girando nas bocas parou. As m�os agora se embrenham nesta esp�cie de molde �mido e quente que me envolve para retir�-lo de mim; umas, mais nervosas, arrancam tufos; outras erguem fios com a ponta dos dedos como se temessem esgar�-los-e assim vai at� que nada mais reste. Meus olhos s�o desvendados. Volto ao mundo vis�vel. No fluxo do emaranhado-baba plasmou-se um novo corpo, um novo rosto, um novo eu.

Estou atordoada. O que � isso que me aconteceu? Sinto-me convocada a enfrentar o enigma. Procuro pistas nos textos da pr�pria Lygia, que sempre me soaram como os mais precisos para dizer o indiz�vel de sua obra. Embora eu n�o disponha neste momento de acesso a seus di�rios2, posso contar com seus textos publicados e alguns in�ditos, suas entrevistas, sua correspond�ncia. Detenho-me especialmente na fase que se inicia logo ap�s o Trepante (1964), �ltimo de seus famosos Bichos-aquele que, segundo Lygia, levou um chute de M�rio Pedrosa3 quando ele o viu pela primeira vez, acompanhado em seguida de um coment�rio entusiasmado: "at� que enfim se pode chutar uma obra de arte".4 A partir do momento em que este chute se torna poss�vel, concretiza-se uma virada na obra de Lygia que j� vinha se anunciando. A nova fase inaugura-se com o Caminhando (1964) e encerra-se com as sess�es dos Objetos relacionais, obra que ela realiza de 1976 a 1981, e bem mais esporadicamente at� 1984. � este per�odo que me interessa pesquisar, pois � a� que Lygia cria a "obra" que me aconteceu, � qual deu o nome Baba antropof�gica (1973). S�o os vinte e quatro �ltimos anos de sua produ��o, quando se torna (deliberadamente) invi�vel expor seus objetos isolados em museus, galerias, salas ou sal�es. Que sentido teria expor carret�is, por exemplo, sem esta experi�ncia que descrevi?

Chama minha aten��o a repeti��o insistente de algumas palavras e express�es, verdadeiros ritornelos. Decido ent�o tom�-los como linhas de minha investiga��o. Come�o por um deles que menciona o corpo, j� que foi a� que algo de inquietante se passou comigo: "mem�ria do corpo". De que corpo e de que mem�ria Lygia estaria falando?

Apelo para a mem�ria das sensa�es que vivi na Baba antropof�gica. Descubro que o corpo em que fui lan�ada e do qual Lygia tanto fala n�o � o corpo org�nico, nem a imagem do corpo, nem o inv�lucro de uma suposta interioridade imagin�ria, que constituiria a unidade de meu eu. E, mais ainda, s�o exatamente estes corpos que foram se desmanchando em mim, diluindo-se na mistura das babas. O corpo vivido nesta experi�ncia est� para al�m deles todos, embora paradoxalmente os inclua: � o corpo do emaranhado-fluxos/baba em que me desfiz e me refiz.

Penso no "corpo sem �rg�os", express�o de Antonin Artaud retomada e expandida por Gilles Deleuze e F�lix Guattari, no mesmo momento em que Lygia fazia sua Baba antropof�gica. O corpo sem �rg�os � esta mat�ria aformal de fluxos/baba, que experimentei num plano totalmente distinto daquele onde se delineia minha forma, tanto objetiva quanto subjetiva. Eu disse mat�ria "aformal" e n�o "informe", porque o que vivi ali n�o foi simplesmente uma aus�ncia ou indefini��o de minha forma, mas sim um al�m da forma. Um plano habitado por uma fervilhante agita��o de fluxos de saliva, de linhas, de bocas, de m�os, em movimentos de atra��o e repulsa, produzindo constela�es-uma pletora de vida em que um feixe desconhecido de sensa�es foi germinando, imposs�vel de ser expresso na forma em que eu me reconhecia. Foi quando me estranhei: algo em mim deixara de fazer sentido. S� fui me apaziguar quando senti ganhando consist�ncia um novo corpo, um novo "eu", encarna��o daquelas sensa�es produzidas pela mistura dos fluxos/baba.

Vislumbro então que o corpo sem órgãos dos fluxos/baba é uma espécie de manancial de mundos�modos de existência, eus, "corpos, como acontecimentos, como aquilo que sempre está por aparecer, por ser produzido".5 É um fora de mim, mas que curiosamente me habita e ainda por cima me faz diferir de mim mesma�como diz Lygia: "o dentro é o fora". Este paradoxo me leva a uma nova pergunta: se não é dentro de mim, onde é que tal fora me habita?

Lembro-me de um comentário de Lygia sobre uma obra do período que estou investigando: "O homem quando põe essas máscaras vira um bicho autêntico, pois a máscara é um apêndice dele."6 Encontro uma pista: o fora é o corpo sem órgãos do autêntico bicho�um além de mim enquanto forma dada, com seu contorno, seu dentro, sua estrutura, sua psicologia. O fora é o vivo não-humano que me habita: matéria feita de babas misturando-se ao infinito, produzindo dobras e mais dobras, cujos contornos circunscrevem dentros. E os dentros vão sendo deglutidos no emaranhado das babas, bicho antropofágico que os devora tornando-os contingentes e finitos. Cada dentro é uma dobra do fora, uma dobra do autêntico bicho.

A associação com os Bichos em suas múltiplas dobras é imediata. Mas também com o Caminhando que vem logo em seguida, inaugurando esta última fase da obra de Lygia: uma iniciação do espectador ao dobrar do fora, formando dentros efêmeros que se desdobram para diluírem-se novamente no fora. Palavras da própria Lygia: "o caminhando permite. . . a transformação de uma virtualidade em um empreendimento concreto".7 Uma virtualidade produzida no fora que se concretizará na criação de uma nova forma.

Volto à Baba antropofágica: é deste fora que foi se produzindo um novo dentro de mim. E dá para imaginar que se repetisse esta experiência em outros contextos, constituídos por outros fluxos, outras misturas, outros dentros de mim iriam se produzir.

Se este é o corpo que habitei na Baba, em que consiste a memória deste corpo? Que espécie de memória tal experiência ativou em mim?

É óbvio que o que se ativou não foi uma memória cronológica, depósito/arquivo de uma seqüência biográfica que minha consciência teria acessado; tampouco um esconderijo de representações reprimidas deste passado.

De novo é Lygia quem responde. O que a Baba ativou foi a memória do "arcaico", mais um de seus ritornelos: o tal bicho�o não-humano no homem e seus afetos�paradoxalmente sempre contemporâneo. Memória do corpo dos emaranhados-baba, campo de experimentação de uma cronogênese: engendramento de linhas de tempo espacializando-se em novos mundos. Memória prospectiva, acessada por reativação (do bicho) e não por regressão (ao passado humano e seus conteúdos recalcados).

Aí uma outra pergunta vem impor-se a mim, a última que tenho de enfrentar para apreender minimamente o que me aconteceu naquele domingo: o que Lygia pretende inventando objetos cuja visada é acessar a memória do corpo?





1. O relato que se segue descreve a experi�ncia que fiz da obra de Lygia Clark Baba antropof�gica, no contexto de um grupo de trabalho que visava inicialmente � prepara��o da retrospectiva de sua obra na XXII Bienal Internacional de S�o Paulo.

2. Lygia Clark escreveu dois di�rios: um di�rio cl�nico (notas das "sess�es" com os Objetos relacionais, sua �ltima obra) e um di�rio pessoal (tr�s volumes de textos que v�o de 1955 a 1973). Pesquisei este material em duas ocasi�es. Uma primeira vez, em 1978, em resposta a um pedido de Lygia: tomar seu �ltimo trabalho como tema de minha disserta��o (M�moire du corps, defendida na Universidade de Paris VII), bem como ajud�-la na elabora��o do texto "Objeto relacional" para o livro que a Funarte consagrou � sua obra. Voltei a trabalhar nos di�rios para um projeto de edi��o de seus textos que desenvolvemos juntas em 1987. Este projeto foi interrompido por sua morte, assim como o acesso a seus di�rios.

3. M�rio Pedrosa � uma das figuras mais importantes da hist�ria da cr�tica de arte no Brasil. Respons�vel pela atualiza��o da arte moderna e defensor das vanguardas, foi um int�rprete privilegiado da obra de Lygia Clark.

4. Extra�do de um trecho do di�rio pessoal de Lygia Clark, que comp�e a capa do livro Artes de Sonia Lins, sua irm� (Nova Fronteira, 1995).

5. Extraído da fala de Carlos Bosualdo numa das mesas-redondas promovidas pela XXII Bienal Internacional de São Paulo, em 14.10.1994.

6. Carta a Hélio Oiticica de 14.11.68, Lygia Clark e Hélio Oiticica, Rio de Janeiro: Funarte, 1987.

7. "1964: caminhando", Lygia Clark, col. Arte Brasileira Contemporânea, Rio de Janeiro: Funarte, 1980, p.25.