|
A esperança de uma obra nova
Nos anos 30, o escultor controla, unicamente por meio dos jogos do espírito, o espaço e as formas orgânicas. São sujeições que traduzem a irrealidade, mas que conduzem necessariamente a uma outra finalidade.
Logo Alberto Giacometti retomará o inelutável estudo de um rosto, de uma realidade abandonada, de uma interrogação sem fim sobre si mesmo. Surge uma obra nova, no limite do visível; trabalhada ao infinito, ela se desloca, fremente, para definir novos contornos, lembrança de uma matéria que poderia, por sua vez, conhecer todos os tormentos. Ela toca de leve na supressão. Assim, esta obra apaixonada, vibrante, situa-se no limite da escultura. Ela nos fala de momentos extremos, em que tudo pode desaparecer. Ela indica sempre o que poderia ser a ruptura. Em sua busca apaixonada por descobrir um outro mundo, o escultor esquadrinha a semelhança e a verdade do Outro, à procura de sua essência.
Em sua reconstrução e restruturação, Alberto Giacometti procura, de modo visível, construir um mundo no limite de sua dissolução, mas a caminho da ressurreição. Nada, porém, fala de recordações e do passado, nessa desesperada tentativa de narrar o presente. A dignidade de um gesto, a dignidade do homem, tudo indica a ressurgência, a insigne e fatal presença humana, a perpétua continuidade. O artista já não mais existe. É o homem, enquanto entidade, que erige e esculpe a urgência de sua perturbadora presença. É a derradeira mensagem, sem dúvida à moda dos primeiros homens, que não sabiam como exprimir sua enigmática existência, mas que a indicavam de maneira definitiva, quando desenhavam as marcas de sua passagem por meio de uma representação exemplar. Eles ignoravam que essa representação seria por toda a eternidade. Alberto Giacometti a transmuta no espaço com a emergente presença do homem, numa obra cuja vida ele se esforça em captar. São momentos intensos, em que ele passa da representação do modelo à representação de um homem, que se assemelha intuitiva e possivelmente a um duplo. É uma constatação mais definitiva, em que tudo se identifica e se reconstrói na busca unitária do ser, signo primitivo, mas signo imperativo, revelador de seu pensamento. A esperança de uma obra nova.
Jean-Louis Prat
Traduzido do francês
por Carlos Eugênio Marcondes de Moura
Alberto Giacometti·o
objeto, o vazio e a morte do homem
L'objet invisible
[O objeto invisível], também conhecida como Mains tenant
le vide [Mãos segurando o vazio], é a última obra
surrealista de Alberto Giacometti (1): provavelmente inspirada
numa escultura do Museu Etnográfico da Basiléia, uma delgada
figura de mulher, ao mesmo tempo em pé e sentada, parece segurar
nas mãos um objeto "invisível". No texto que lhe dedicou
(2), André Breton quis ver nela "a emanação do desejo
de amar e de ser amado à procura de seu verdadeiro objeto humano
e em sua dolorosa ignorância". Antes da descoberta de uma máscara,
feita na companhia de Giacometti, descoberta essa a que atribuía
uma importância determinante, Breton acreditava perceber a ausência
"de uma certeza quanto à realidade, um ponto de apoio no mundo
dos objetos tangíveis". "Faltava", prossegue ele, "aquele termo
de comparação, mesmo longínquo, que confere bruscamente
a certeza". Dito de outra maneira, uma obra não teria como se sustentar
por si mesma, numa total independência em relação
ao mundo. E, em sua preocupação de esquadrinhar o imaginário,
Breton não só deixa de levar em conta os dois títulos
da escultura, mas persiste em considerar a posição das mãos
como indicativa de um objeto que falta. Sem o dizer desta vez, ele naturalmente
julga sonhar com um novo objeto, que viria preencher esse vazio e esse
inaceitável interstício. Para ele, o invisível pode
e deve ser convertido em ausência, e o vazio, em falta. Os objetos,
encontrados ou sonhados, fantasmáticos e analisados, têm
essencialmente como tarefa garantir uma continuidade entre as percepções
e as realidades, isto é, interceder junto às potências
mágicas do além.
No entanto, se as
mãos parecem apropriar-se do vazio, se o objeto é invisível,
é porque ele já foi destruído, ou mais exatamente
porque esta obra, de fundamental importância, constitui uma tentativa
decisiva de lhe fazer ceder o lugar·o lugar inteiro·à figura humana.
Alguns anos antes, Giacometti já havia começado a executar
as premissas dessa destruição: a Femme egorgée [Mulher
degolada], de 1932, que se redescobrirá sob os traços da
aranha descrita em 1946 em Le rêve, le sphinx et la mort de T. [O
sonho, a esfinge e a morte de T.], evidentemente deve mais aos escritos
de Georges Bataille e às explorações da revista Documents
do que às teorias surrealistas ortodoxas. A ambivalência
entre o animal e o humano, a associação do ato sexual ao
assassina (3) testemunham com bastante evidência a violência
que Giacometti exerce ao mesmo tempo sobre o objeto de arte, de uma só
vez contra suas formas historicizadas e contra o princípio realista.
Para ele, os objetos não assumirão mais a menor função
de mediação entre os tempos e os homens, da mesma forma
que os sonhos perderão sua função de conjugar percepção
e realidade. E, se essa diferença irredutível entre os dois
homens não era claramente delimitada, lembremo-nos de que, apesar
de sua insistência, Breton jamais obteve de Giacometti a materialização
do "cinzeiro Cinderela" com o qual havia sonhado e que queria tocar com
as mão (4). Entrando num espaço descontínuo, de onde
são excluídos os rituais e os fetiches, onde as equivalências
são proscritas por sua própria vaidade, Giacometti abre
sua obra unicamente para a figura.
No final desse mesmo
ano de 1934, tendo em vista a necessidade de sua ruptura programada e
inevitável com Giacometti, Breton decide que sabe o que é
uma cabeça. Ele sabe, ou·o que é mais verossímil·não
quer saber, considerando o fraco valor de uso de uma simples cabeça,
que oporia seu mutismo à tagarelice dos vivos, que se esquivaria
da comunicação e da comunhão oculta dos pensamentos.
O escultor tem todas as razões para pensar o contrário,
mesmo se, ou por que, "é um tanto anormal passar o tempo, em lugar
de viver, tentando copiar uma cabeça, imobilizar a mesma pessoa
durante cinco anos numa cadeira, todas as noites, tentar copiá-la
sem sucesso". Os diferentes escritos, anteriores ou póstumos, colocam
em cena a cabeça como um motivo obsessivo: das cabeças dos
supliciados de Géricault à cabeça que ele não
consegue perceber em seu conjunto e que joga na lata de lixo em 1920,
passando pela morte alucinada de T., em cuja boca desaparece uma mosca,
ela continua sendo o obstáculo imprevisto de um olhar incrédulo
sobre um mundo no qual os mortos assumem inesperadamente o lugar dos vivos.
A cabeça, que Giacometti distingue implicitamente do rosto, e que
ele havia apreendido sob a aparência do crânio, numa extraordinária
pintura de 1923, é menos o lugar do espírito e dos sentimentos
do que a parte do corpo onde oscilam e se interpenetram a vida e a morte,
em toda sua brutalidade animal. Jamais procura ele desfazer-se desse fascínio,
redistribuindo-o em qualquer outra parte. Ao contrário: "A forma",
escreve Giacometti a respeito de Jacques Callot, "está sempre na
medida desta obsessão".
A cabeça não
exprime a singularidade do outro, não é sequer a encarnação
do Outro. Não foi evidentemente por acaso que Diego, ao mesmo tempo
seu irmão e seu duplo, tornou-se o primeiro e também o mais
constante modelo desse empreendimento concreto e repetitivo. Dezenas de
esculturas têm como título o nome do irmão, que é
o nome do próprio, fora de toda psicologia, no lugar do nome do
pai. Em uma nota de 1959, Giacometti refere-se a um próximo retrato
de Diego como se fosse a primeira vez que o executaria, como se, longe
de ter captado seus detalhes ao longo dos quinze anos anteriores, tudo
ainda estivesse para ser descoberto. Os testemunhos de diferentes modelos
atestam a exigência do escultor, sua obstinação e
sua resistência. Nos anos trinta, bem como no fim da vida, Giacometti
concentra a mesma energia em intermináveis sessões de poses.
Apesar do privilégio concedido a alguns deles, os modelos parecem
tornar-se intercambiáveis·"Diego, Annette, Caroline, outras esculturas,
pinturas, desenhos"·e parecem dispor-se a integrar um único modelo
genérico.
Copiar de novo, copiar
outra vez. Mas copiar não consiste em abandonar-se a um mimetismo
qualquer, visto que não existem cabeças como existem rostos,
mas uma Cabeça. As aparências são contingentes, e
nem por isso está excluído que os detalhes particulares
de um modelo suscitam um estímulo renovado e necessário,
como o mostra sua experiência com Isaku Yanaihara. A questão
da semelhança é deslocada para muito longe de sua acepção
e de suas exigências ordinárias. Ela não é
um objetivo nem um fato mais ou menos consumado, que se poderia medir,
mas um processo, um movimento, uma metamorfose. Quanto a isso, a semelhança
é um jogo, um trabalho que corresponde ao regime da imagem, tal
como a concebia Georges Bataill (5), e que não obedece às
regras da Idéia, mas que se esquiva da positividade das aparências
plásticas. Jean Genet fez desse movimento a qualidade maior do
trabalho de Giacometti. A beleza dessas esculturas, escrevia ele, "parece-me
que está nesse incessante e ininterrupto vaivém da mais
extrema distância à mais próxima familiaridade: esse
vaivém não acaba e é deste modo que se pode dizer
que elas estão em movimento"(6)
Esse movimento não
obedece a nenhuma lógica temporal (7) que tornaria Diego mais semelhante
a si mesmo ou mergulharia L'homme qui marche sous la pluie [O homem que
anda debaixo da chuva] no âmago do antes e do depois de uma estrutura
narrativa. Tudo acontece "como se o espaço tivesse tomado o lugar
do tempo", um espaço vazio e descontínuo, "o grande vazio
escancarado no qual [os] personagens [de Jacques Callot] gesticulam, se
exterminam, se abolem". Nesse vazio aberto a todos os ventos, a permanência
dos modelos não representa de modo algum uma garantia de continuidade
no tempo ou no espaço, que é, segundo a representação
que dele faz Giacometti em Le rêve, le sphinx e la mort de T., uma
espécie de disco, isto é, um plano sem meio, sem coerência,
privado de todo princípio de síntese, cujas diferentes partes
são, ao contrário, separadas por linhas irredutíveis.
Quando ele chega a dizer "não sei o que é o espaço",
não é que reconheça uma incapacidade em construí-lo,
mas sim que toma nota desse deslocamento dos parâmetros espaciais.
As diferentes gaiolas·a de Le nez [Nariz], aquela que contém uma
cabeça e uma silhueta, na obra epônima de 1950, a de Figurine
dans une boîte entre deux maisons [Figurino numa caixa entre duas
casas] ou aquelas esboçadas na maior parte de suas pinturas·não
pretendem certamente reconstituir o espaço, dar-lhe uma forma efetiva.
Os lugares, como as gaiolas, não representam um teatro onde o imaginário
poderia indicar as cenas de uma ação psicológica
ou de uma situação existencial. Eles são os pedestais
de uma segmentação, de uma fragmentação da
consciência do corpo humano.
Le torse [O torso]
(1925), a Pointe à l'oeil [Ponta no olho] (1932), La main [A mão]
(1947), Le nez [O nariz] (1947) ou ainda La jambe [A perna] (1958) pontuam
com estranha regularidade a inquieta relação com a parte
e com o todo, que Giacometti mantém e discute do início
ao fim da vida. "Não posso", diz ele, referindo-se a La Jambe,
"ver simultaneamente os olhos, as mãos, os pés de uma pessoa
[. . .] mas a única parte que eu olho desperta a sensação
da existência do todo." No sentido inverso, quando ele pretende
reconstituir uma pessoa em sua inteireza ou, em todo caso, dos pés
à cabeça, Giacometti constata a impossibilidade de apreender
o conjunto dela. "Se eu o olhar de frente, esqueço o perfil. Se
olhar o perfil, esqueço o rosto." Os personagens filiformes parecem
estar seguros de sua integridade, mas, por serem a conseqüência
de uma incapacidade de apreender o todo, nem por isso são íntegros,
mas desproporcionalmente reduzidos. São o resultado de um empreendimento
tão destrutivo quanto aquele que opera nos fragmentos, são,
na realidade, como os membra disjecta de um único corpo fantasmático,
do qual não pode ou não quer apropriar-se.
Giacometti definitivamente
não se conforma ao modelo mitológico de Pigmalião.
Se a semelhança é esse processo sempre descontínuo
e inacabado e não um sistema de emparelhamento do inanimado com
o vivo, é desnecessário dizer que ele não procura
de modo algum suscitar ou restituir a vida, pois pretende "unicamente"
copiar esses "resíduos de visão" nos quais a morte realiza
sua tarefa, com obstinação e em segredo. Não há
necessidade de solicitar por demais seus próprios textos para que
se dê a conhecer a dimensão canibal de seu pensamento e de
seu trabalho. É um canibalismo eqüidistante da experiência
literal e da especulação metafórica. "Erotismo·ramo
da nutrição. Atração, amor, assassinato, antropofagia,
etapas do mesmo desejo", pode-se ler numa nota de 1944. Como diz ainda
nessa mesma nota, esse canibalismo é a procura de uma síntese
entre o mundo exterior e si mesmo. Por ser impossível e não
se abrir à coesão narrativa do sonho surrealista, essa tentativa
de síntese alimenta a perpétua luta de Giacometti com o
humano·ele que se compreendia e se via como sendo um cachorro (8), ou,
em todo caso, como um homem que jamais teria a certeza de pertencer de
pleno direito à espécie humana. E que, de resto, não
reivindica nenhum dos direitos que o fato de pertencer lhe conferiria.
Endocanibal, Giacometti
devora seus modelos para arrancá-los do espaço do túmulo
e não·já que a maior parte desses modelos pertence à
sua família·para apropriar-se novamente deles ou para captar seu
ser. Já não se trata mais de assombrar o outro, ou de ser
por ele assombrado, conforme dizia Maurice Merleau-Ponty (9). Ainda mais
que, sendo petrificação do ser, a fusão operada por
Giacometti é muito mais intimamente primitiva e violenta do que
pode parecer. Enquanto tal, ela tanto deve ao exercício do olhar
quanto ao das mãos que modelam, que estrangulam a matéria.
Então, não existe mais essa "duplicidade do sentir" que
descrevia ainda Merleau-Ponty, mas uma ruptura que remete ironicamente
o espectador à insuficiência de sua visão retínica.
E que o remete ao caráter ridiculamente estabelecido da distinção
que se pode fazer entre a vida e a morte.
O vocabulário
fenomenológico favoreceu, a propósito de Giacometti, a dialética
da ausência e da presença. Mas aquilo com que nos confrontam
essas cabeças e esses personagens feridos é mais nossa incapacidade
de assimilar o ser humano sob todas as suas formas fragmentárias.
Longe estamos·e o artista certamente não nos convida a isso·de
assumir a posição de imitar o canibalismo do artista, como
pensava Michel Leiris, que via nas obras dos anos 20 "iguarias de pedra,
comidas de bronze maravilhosamente vivas".(10) Nem culpados nem inocentes,
somos os espectadores de um assassinato que ocorre por toda a eternidade,
cujas esculturas são como relevos. É ainda nesse sentido
que a relação de Giacometti com o primitivismo é
mais fundamental do que aquela que pode retranscrever uma história
das formas. Ele não se entrega a um exorcismo modernista·como o
fez Picasso com Les demoiselles d'Avignon [As senhoritas de Avignon]·nem
sub-interpreta a arte primitiva, a exemplo de Matiss (11). Giacometti
a compreende no imediatismo de um diálogo e se afasta a passos
largos do idealismo dentro do qual seus contemporâneos contêm
a morte.
Alain Cueff
Traduzido do francês
por Carlos Eugênio Marcondes de Moura
Notas
1. Última,
desde que se admita que Giacometti jamais foi surrealista, o que, a despeito
das circunstâncias e da insistência de certos comentários,
está longe de ser indiscutível.
2. André Breton,
"Equation de l'objet trouvé", 1934, ao qual o autor volta em L'amour
fou, Paris, 1937.
3. "Objetivo do prazer
do amor ao assassinato", lê-se numa nota de 1944, publicada nos
Ecrits, apresentados por Michel Leiris e Jacques Dupin, Paris, 1990.
4. Ver Yves Bonnefoy,
Giacometti, Paris, 1991. Por ocasião da mesma visita feita ao mercado
das pulgas, em 1934, ele encontrou ali seu equivalente.
5. Ver Georges Didi-Huberman,
La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille,
Paris, 1995.
6. Jean Genet, L'atelier
d'Alberto Giacometti, Décines, 1958“1963.
7. "Nego o tempo",
lê-se sobre um desenho de 1934“35, reproduzido nos Écrits.
8. Aliás, O
cachorro (1951) é, sem dúvida, seu único auto-retrato,
no sentido tradicional do termo, esculpido.
9. Maurice Merleau-Ponty,
L'oeil et l'esprit, Paris, 1964.
10. Michel Leiris,
"Alberto Giacometti", Documents, Paris, 1929.
11. Ver William Rubin,
"Le primitivisme moderne, une introduction", Le primitivisme dans l'art
du XXe. siècle, Nova York, 1984.
|
|