Destruição do pai

Uma combinação de caverna de predador de estalactites, estalagmites protuberantes e presas comidas pela metade e um teatro Grand Guignol de marionetes·Destruction of the father [Destruição do pai] é a cena do crime. Na versão de Bourgeois dos eventos, cuja cena final é aqui representada, o pai, acostumado a se sentar à cabeceira da mesa e a falar enquanto todos ouvem em silêncio, finalmente conduz sua platéia cativa a um tal estado de loucura que seus filhos, levantando-se em revolta, matam-no e comem-no.

Em um certo sentido, o conto enquadra-se na descrição feita pela artista da raiva que sentia por seu próprio pai, que se deliciava ao entreter sua família e convidados por horas a fio com histórias e piadas, freqüentemente à custa dos filhos. Em outro, desta vez psicanalítico, o conto é uma parábola de vingança edipiana, mais precisamente de castração. Pois é difícil não ver a câmara construída por paredes de Destruction of the father, em suas formas arredondadas contrapostas, como uma enorme vagina dentata. No entanto a fonte da imagem que emerge dos primeiros desenhos de Bourgeois não é estritamente autobiográfica nem freudiana, mas sim greco-romana. Temoroso de que seus filhos usurpassem seu poder ou brilhassem mais que ele na posteridade, Cronos·ou Saturno, como seria mais tarde conhecido·devorou seus filhos, um a um. Sua crueldade é motivo de inúmeras obras de arte, grandes pinturas de Rubens e Goya. (No Renascimento, o nome de Saturno simboliza a melancolia artística.) Destruction of the father demonstra as conseqüências de os filhos virarem o jogo contra seu progenitor e assassino.

Assim, os elementos e motivos encontrados nos primeiros trabalhos da artista surgem muitas vezes em seus últimos trabalhos. Como a recorrente "faca", cada motivo é um símbolo em si mesmo, ao mesmo tempo que em conjunto destacam a constância das obsessões da artista, bem como a estranha eficiência da aparentemente fortuita gestação de sua obra. Clímax de um ressentimento filial de toda uma vida, cauterização de uma ferida profunda causada pela morte de seu marido e a revisão radical de um paradigma modernista, Destruction of the father exemplifica essa confluência entre antigas intuições com necessidades e circunstâncias presentes.

Inicialmente entitulado Le repas du soir [A refeição noturna], o trabalho foi pela primeira vez exibido ao público em 1974 no espaço experimental da 112 Greene Street, em Nova York, a primeira exposição individual da artista, desde sua mostra em 1964 na Stable Gallery. Envolta numa cortina de tecido encerado, de modo bastante diferente do da apresentação final do teatro de marionetes, a instalação era a peça central de uma grande seleção de trabalhos que também incluiu esculturas em bronze e mármore executadas na Itália, nas visitas a Pietrasanta durante os quatro anos anteriores. Dentre as esculturas mais tradicionais, encontravam-se Hommage to Bernini [Homenagem a Bernini] (1967), diversas versões da imagem de Jano de 1968, assim como Baroque [Barroco], Eye to eye [Olho a olho] e Rabbit [Coelho] (todas por volta de 1970), um certo número de cumuls entalhados e reunidos, e um pequeno retrato fundido da cabeça de seu irmão Pierre, que·embora fora posteriormente excluído do trabalho·ocupava uma posição na base de Destruction of the father, tornando essa versão original da obra explicitamente autobiográfica.

Descrito diversas vezes com pequenas variações de ênfase ou detalhe, o cenário de Destruction of the father é ao mesmo tempo totalmente anedótico e deliberadamente mítico. A seguir, uma versão completa, construída a partir de vários contos e descrições:

"Há uma mesa de jantar e pode-se ver que várias coisas acontecem ao mesmo tempo. Pomposamente, o pai fala à sua platéia cativa sobre sua grandeza, as maravilhas que fez, os maus que derrubou hoje. Mas isso prossegue dia após dia. Há tragédia no ar. O pai repetiu sua história muitas vezes, em demasia. Ele é insuportavelmente dominador, embora provavelmente não se dê conta disso. Cresce um certo ressentimento, e um dia meu irmão e eu tomamos uma decisão, †chegara a hora!Ë Nós o agarramos, o colocamos sobre a mesa e com nossas facas o dissecamos. Nós o despedaçamos, o desmembramos, cortamos seu pênis. E ele se tornou alimento. Nós o comemos. Trata-se, como se vê, de um drama oral. A irritação foi sua ofensiva verbal contínua. Foi liquidado da mesma maneira que liquidava seus filhos. A escultura representa tanto uma mesa quanto uma cama. Quando se entra no quarto, vê-se a mesa mas também, no andar de cima, no quarto dos pais, há uma cama. Essas duas coisas contam na vida erótica de uma pessoa: a mesa de jantar e a cama. A mesa em que seus pais fizeram você sofrer. A cama em que você se deita com o marido, em que seus filhos nascem, em que você morrerá. Essencialmente, como ambas são do mesmo tamanho, ambas são o mesmo objeto."

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Centrada na imagem do pai como autocrata da "palavra", a explicação sintetizada de Bourgeois pode ser interpretada de várias maneiras, mas um desenho do final dos anos 30 antecipa inequivocamente o tema da ofensa e do abuso familiares. À cabeceira de uma mesa curvada, senta-se uma mulher circunscrita pela silhueta de uma casa; em frente à mulher, estirado no chão, encontra-se um homem com uma faca enterrada nas costas. Enquadrados pela forma oval entre eles, vemos rostos de crianças cujos contornos arredondados irregulares se assemelham aos montes enrugados que cobrem a "mesa" posta por Bourgeois para a "refeição noturna" sacrificial. Enquanto Saturno comeu sua prole como punição de seu amor incestuoso para com eles·esse é o motivo de vários outros desenhos feitos antes da guerra·, em Destruction of the father, os filhos atacam primeiro.

Pela primeira vez desde o final dos anos 20, Bourgeois concebera uma obra como um ambiente total. Nesse caso, todavia, ela fechava o espaço permitindo seu acesso visual apenas através de um arco proscênio, em vez de montar seu drama num teatro de arena, como fizera na exposição da Peridot Gallery em 1949“50 e faria mais tarde em outras instalações. Em Destruction of the father, empregou pela primeira vez os materiais suaves que seriam freqüentes nos trabalhos feitos a partir do início dos anos 60, mesmo enquanto os nódulos de látex em forma de bulbo que preenchem a cobertura do nicho citam o teto do qual pendem sacos de carvão de Duchamp na exposição do Surrealismo Internacional na Gallery des Beaux Arts em 1938, ou lembram as paredes onduladas das cavernas de Lascaux que Bourgeois visitara durante os anos 60. Da mesma forma, as sobras de animais obtidas em mercados locais, fundidas em gesso e espalhadas sobre o chão cavernoso da peça, evocam tanto os restos horripilantes primitivos do caçador quanto o mercado de carne crua de The quartered one [O esquartejado] (1964“65).

Não encontramos, porém, nenhum objeto afiado; tampouco o pai está presente seja no todo, seja em parte. Embora claustrofóbico, o local está virtualmente vazio, como se a carnificina ritualística fora completada com o convidado de honra inteira e apropriadamente consumido. No entanto, sem quaisquer evidências dos perpetradores, o sexo do responsável primário é aparente. Com sua boca bocejante e enormes "molares", com suas feições de útero, Destruction of the father é em si a criatura carnívora e a vagina dentata definitiva. A despeito do cuidado de implicar seu irmão no crime, na realidade a filha por si só se deliciou com o pai e, dessa maneira, usurpou o papel do filho na luta contra sua dominação.

Para que o triunfo sedento de sangue de um geração sobre a outra possa acontecer e recorrer em benefício do filho antes dependente, agora assassino e independente, o pai deve ser mantido vivo ou de algum modo ser ressuscitado. Se sua morte chega prematuramente, antes que o filho invejoso possa sobreviver sem ele e se orgulhar de fazê-lo, seus efeitos podem ser devastadores. O problema é crucial para a vida e obra de Sylvia Plath e sua aflição compara-se de forma instrutiva com a de Bourgeois. "Papai, tive de matá-lo./Você morreu antes que eu tivesse tempo", escreveu Plath com uma inimizade frustrada.

Desprovida da arrogante e malévola presença do pai, ela se despedaçou: "Puxaram-me do saco./E juntaram-me com cola/E então eu sabia o que fazer./Fiz um modelo de você". Embora seu pai ainda vivesse quando ela contava mais de trinta anos, Bourgeois foi igualmente incapaz de estabelecer sua soberania própria antes de sua morte. Sujeita a episódios de mutilante melancolia, ela, como a poetisa, foi obrigada a construir um monumento a sua fácil autoridade para que então pudesse destruí-la. É uma prova do superior instinto de autopreservação de Bourgeois que ela tenha tão freqüentemente conseguido se recolher e recompor no processo de modelagem do patriarca tirânico ou, no caso de Destruction of the father, criar uma imagem de desolamento causada pela morte do marido e de um veículo para sua furiosa angústia. Da angústia passiva ao ódio ativo, esse "assassinato" fantástico redirecionou os impulsos suicidas que periodicamente tomavam conta dela. Assim, o sacrifício simbólico da vida do pai tornou possível o prosseguimento da filha, preenchendo o propósito desse ritual em termos concretos e metafóricos.

Genuinamente totêmico em sua função·embora como entidades que contêm em vez de serem contidas, a antítese formal de suas peças entalhadas dos anos 40 e 50·, Destruction of the father transformou agressão em expiação da traição filial e vingança coletiva em comunhão mediante uma dialética psicológica escrita na descrição de Freud da transgressão sacramental em sociedades tribais. Freud, paradigmático de parricídio psicológico, acreditava que "o banquete totêmico, talvez o primeiro que a humanidade jamais celebrara, fosse a repetição, o festival da memória, desse célebre feito criminoso".

Atuando em sintonia e com crueldade conspícua, os membros de um clã estabelecem as fronteiras de conduta e afirmam sua herança comum mediante um excesso calculado e uma culpabilidade compartilhada. Paradoxalmente, então, a matança do pai ou o consumo do animal-totem em que é transubstanciado estabelece um rito comemorativo e um gesto de contrição e reconciliação.

Uma análise da resolução social do dilema edipiano, a hipótese de Freud, antropologicamente duvidosa porém psicologicamente potente, esclarece os motivos conflituosos subjacentes à cerimônia demoníaca de Bourgeois. Seduzida emocionalmente e abandonada pelo pai, ciumenta de seu amor e seu poder arbitrário sobre ela, a filha vê em Destruction of the father uma forma sardônica do melhor dos dois lados na qual se pode ter o pai e também comê-lo.